Covid acabou com a ida dos gaúchos até a fronteira comprar vinhos dos castelhanos

Uma churrascada no acampamento Farroupilha de Porto Alegre em 2019. Foto: Reprodução

Sempre tive dificuldade para explicar o modo de vida dos gaúchos para os colegas de outros Estados e os estrangeiros que encontrei durante a cobertura jornalística de conflitos agrários pelos sertões brasileiros. Por isso vou começar a nossa conversa contando uma historinha. O mês de setembro é a época do ano em que os gaúchos reverenciam os seus heróis que lutaram na Revolução Farroupilha, ou Guerra dos Farrapos, um conflito travado de 1835 a 1845 contra o governo central do então Império do Brasil. A forma de homenagear aqueles que tentaram separar o Rio Grande do Sul do resto do Brasil é reviver as tradições culturais. Por conta disso, nessa época do ano, por todo território gaúcho se espalham os “acampamentos farroupilhas”, locais onde os frequentadores podem reproduzir o modo de vida dos seus antepassados. O maior deles é o de Porto Alegre, que acontece entre 15 a 22 de setembro, na Estância da Harmonia, uma área no interior do Parque Maurício Sirotsky Sobrinho, nas proximidades do centro da cidade e quase às margens do Guaíba, o lago que banha a capital gaúcha. Este é o segundo ano que o acampamento não terá presença de público devido à pandemia. Na última edição, em 2019, pelas contas dos organizadores, 1 milhão de pessoas visitaram o evento. Porto Alegre tem 1,5 milhão de habitantes. Lembro que, durante a realização do acampamento, quase que permanentemente paira sobre o local uma nuvem baixa de fumaça com cheiro de churrasco. Contei essa história em 15 de setembro do ano passado, no post “É insuportável Porto Alegre sem o cheiro do churrasco do Acampamento Farroupilha”.

Os festejos públicos da Revolução Farroupilha foram uma vítima ilustre da Covid-19. Aqui eu paro de contar a história e começo a nossa conversa. Outro ilustre costume gaúcho vitimado pela Covid foi o hábito de viajar com a família até a fronteira do Uruguai e da Argentina para se abastecer de vinhos, doce de leite, temperos e roupas de lã. É uma viagem de uns 500 e poucos quilômetros saindo da Região Metropolitana de Porto Alegre. Mesmo em tempos de gasolina cara e dólar alto a viagem compensa, porque o preço do vinho chega a ser 50% menor do que o encontrado no comércio brasileiro. E o passeio é maravilhoso. Por conta da pandemia esse é o segundo ano que as famílias gaúchas não podem ir ao Uruguai e à Argentina fazer compras e se abastecer de vinhos. Aqui uma explicação para quem não mora no Rio Grande do Sul. O comércio de fronteira entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai e a Argentina é uma tradição muito antiga. Ali nasceram personagens como o chibeiro, como se chama a pessoa que faz contrabando de pequenas quantidades. Mencionado nas poesias e canções gaúchas, esse personagem cunhou uma expressão que é usada para convidar um amigo para ir até a fronteira se abastecer de vinho ou outra mercadoria: “Vamos fazer um chibo?”. Claro que as compras são feitas dentro da lei. A cota de compra por pessoa é de 500 dólares. É sempre bom se informar com a Polícia Rodoviária Federal (PRF) ou a Receita Federal (RF) sobre o limite de caixas com seis garrafas de vinho por pessoa adulta.

Nos últimos anos o comércio da fronteira gaúcha com o Uruguai e a Argentina cresceu muito e mesmo nos momentos de dólar caro muita gente anda por lá, porque os produtos uruguaios e argentinos têm um preço acessível para os brasileiros devido à diferença cambial entre o real e as moedas locais. Apesar das restrições impostas pela pandemia, o comércio com o Uruguai “está funcionando a meia-boca” porque a maior parte da fronteira é seca, como é o caso de Santana do Livramento e Rivera, separadas por uma avenida. Já no caso da Argentina a situação é mais complicada porque é preciso cruzar o Rio Uruguai, o que significa passar por controles de fronteira dos dois lados. A população local continua a sua vida normal. Abastecendo-se dos dois lados da fronteira. Aqui lembro o seguinte. Por conta da pressão do governo do Mato Grosso do Sul, o governo federal concordou em intensificar a vacinação das cidades da fronteira com o Paraguai. Conheço bem a região por ter escrito o livro Brasil de Bombachas, que conta a história dos gaúchos que povoaram as fronteiras agrícolas, como a daquela região. Ali, a maioria da população que vive nos dois lados da fronteira é de brasileiros ou famílias chamadas de brasiguaios, que foram formadas pelos casamentos entre os locais.

Nas cidades da fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai e a Argentina não é possível separar brasileiros, uruguaios e argentinos. Ao longo dos anos foram se misturando tanto que surgiu a expressão “doble chapa”, como são chamados aqueles que têm duas cidadanias. Se tivesse acontecido um acordo entre os governos de Brasil, Uruguai e Argentina, a população da fronteira já teria sido imunizada há bastante tempo e o comércio teria voltando à normalidade. A omissão da grande imprensa gaúcha para o problema é incrível. Graças à vacinação já se pode ver pelas estradas do Rio Grande do Sul pessoas vestidas do modo tradicional, cavalgando com seus amigos e famílias. Aos poucos estamos voltando ao normal. Se o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) não fosse negacionista em relação ao poder de contágio e letalidade do vírus, o que acabou atrasando a compra de vacinas pelo Brasil, hoje a situação poderia estar bem mais perto do normal.

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