Criação de novos cursos de medicina é sinônimo de queda na qualidade do ensino?

Até quando as entidades médicas e vão vender ilusões para os associados? Foto: Reprodução.

O lobby dos médicos vem investindo muito dinheiro em publicidade para fixar na mente dos brasileiros a visão de que o crescimento do número de faculdades  de medicina terá como resultado uma queda violenta na qualidade do ensino. Considero que a prática do lobby, quando feita dentro da lei, é um direito da categoria. Faz parte do jogo. Agora, a obrigação de explicar onde acaba o lobby e começa a realidade é nossa: os jornalistas. Em primeiro lugar, o interesse das entidades dos médicos não tem nada a ver com qualidade do ensino. Existem leis no país que cuidam dos profissionais que cometem erros no exercício do seu ofício. A preocupação, na verdade, é com o aumento da oferta de mão de obra no mercado, o que resultaria em diminuição dos ganhos dos profissionais. A velha lei da oferta e da procura.

Até o próximo mês de julho, o Brasil terá um efetivo de meio milhão de médicos. Grosso modo, resultará no ingresso dos brasileiros na galeria dos países desenvolvidos que têm, em média, 2,80 médicos por mil habitantes. Em 2018, a média brasileira era de 2,18 médicos. Formados pelos 283 cursos existentes no país, que colocam no mercado, anualmente, 30 mil profissionais, em números redondos. Porém, o problema não é a quantidade de médicos. Mas a sua distribuição no território nacional. Na parte mais rica, os estados do Sudeste, existem 2,81 médicos por mil habitantes. Na mais pobre, o Norte, 0,40. Há um estudo disponível na internet que explica muito bem essa situação: a pesquisa Demografia Médica do Brasil (2018), feita pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), em parceria com entidades médicas.

A explicação para esses números não é só econômica: é cultural.  As faculdades de medicina nasceram nas grandes cidades do Sudeste, especialmente São Paulo. Primeiro, os médicos consolidaram a sua presença nas médias e grandes cidades e dali começaram a se espalhar pelo interior dos estados ricos do Sul e do Sudeste, entre eles Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina e São Paulo. A chegada deles não foi tranquila. Para se consolidarem, precisaram colocar na ilegalidade as benzedeiras e as parteiras que até então eram quem atendia a população, inclusive os ricos. No Rio Grande do Sul, na metade da década de 80 ainda existiam confrontos entre médicos e parteiras.

Os primeiros médicos que foram trabalhar no interior desses estados ganharam muito dinheiro. E ajudaram a consolidar na mente das pessoas a ideia da profissão como sinônimo de riqueza. Pode ter sido. Mas as coisas mudaram. Nos anos 80, as faculdades de medicina começaram a surgir pelo interior. O Sistema Único de Saúde (SUS) foi criado. Os planos de saúde se popularizaram. Hoje, nas cidades pequenas e médias dos estados do Sul e Sudeste, a principal fonte de renda dos médicos são os contratos de prestação de serviço com as prefeituras, o SUS e os planos de saúde.

Os contratos com as prefeituras têm um problema: na troca do prefeito, o médico perde o emprego. Daí a razão pela qual as entidades de classe estejam pressionando para que os médicos tenham um plano de carreira que inclua a estabilidade no emprego. As entidades de classe estão vendendo para a opinião pública esse formato de contrato de trabalho como a solução para levar os médicos para o interior do Brasil, principalmente para as cidades pobres. Eu conheço o interior do Brasil como a palma da minha mão. E digo que os médicos vão continuar se amontoando nas cidades ricas e não irão para os “mais distantes rincões”.

Vejam bem: os cursos de medicina em faculdades públicas são poucos e requerem um bom investimento da família na preparação do filho para os exames de vestibular. As faculdades particulares, que são a maioria, cobram, em média, R$ 7 mil por mês. Considerando que o estudante complete o curso em seis anos, só de mensalidade irá gastar meio milhão de reais. Somando-se os custos de livros, alimentação, moradia, transporte, reajuste das mensalidades, juros bancários de empréstimos e outras despesas, o gasto total chegará a alguns milhões de reais. Se ele tiver sorte e conseguir uma boa colocação no mercado de trabalho, mesmo assim levará alguns anos para recuperar o que foi investido na sua formação. É muito dinheiro gasto para a família ter o orgulho de bater no peito e dizer que tem um filho médico.

A situação vai piorar para o lado dos médicos. Por que o grande negócio hoje é investir na formação de médicos. E não em ser médico. As faculdades de medicina não trazem só lucros para seus proprietários. Trazem também prestígio, porque reforçam a marca da universidade. As entidades de classe precisam investir tempo e dinheiro em publicidade, seminários e outras maneiras de comunicação para começar a desmanchar o mito do “médico rico”. Aqui é o seguinte: a maioria dos médicos que entra no mercado vem das universidades particulares. Vou repetir o que já disse: eles não vão tirar o dinheiro que investiram na sua formação. E como é um bom negócio investir em faculdades de medicina, os capitalistas vão continuar montando cursos e jogando gente no mercado. É a tal economia de mercado agindo. Ou, como diriam as benzedeiras: “o feitiço virou contra o feiticeiro”. Nós, repórteres, precisamos começar a explicar essa história direitinho para o nosso leitor. É do seu interesse.

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