Da mente do seu autor até ser apreendida pela Polícia Federal (PF), qual foi a rota seguida pela minuta do golpe no Palácio do Planalto? Essa é uma história que a imprensa está devendo para os seus leitores. Ela tem sido publicada aos pedaços nos noticiários. Mas alguém vai ter que unir os pontos, investigar as lacunas entre os fatos e fazer uma grande reportagem, que pode virar um bom livro. Saber essa rota é fundamental para se entender as entranhas da tentativa de golpe de 8 de janeiro, quando bolsonaristas radicalizados invadiram e vandalizaram os prédios do Congresso, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal (STF), na Praça dos Três Poderes, em Brasília (DF). O objetivo era criar o caos para forçar o presidente recém-empossado, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a decretar estado de emergência e chamar as Forças Armadas, abrindo, com isso, caminho para a volta à Presidência de Jair Bolsonaro (PL), que foi derrotado nas urnas na sua tentativa de reeleição. Como conta a história, a tentativa de golpe foi um tiro que saiu pela culatra. Mais de 1,5 mil pessoas foram presas, incluindo oficiais da Polícia Militar e das Forças Armadas – há matérias na internet. Nos dias seguintes ao 8 de janeiro, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, decretou a prisão preventiva do delegado da PF Anderson Torres, ex-ministro da Justiça do governo Bolsonaro e posteriormente secretário da Segurança do Distrito Federal.
Foi durante o cumprimento de um mandado de busca e apreensão da casa de Torres que os agentes da PF encontraram a minuta do golpe, como foi apelidado pela imprensa o esqueleto de um decreto-lei chamado Estado de Defesa e Intervenção no Tribunal Superior Eleitoral, para reintroduzir a ordem pública e a paz social. Torres, em depoimento à PF, e Valdemar da Costa Neto, presidente do PL, partido de Bolsonaro, disseram que a minuta do golpe já circulava havia bastante tempo entre os bolsonaristas e a definiram como sendo sem importância. Os policiais investigaram as impressões digitais no documento e não encontraram novidades. Agora estão investigando rastros de DNA presentes na minuta. Mas é quase impossível achar uma digital ou DNA que facilite a descoberta da rota que o documento percorreu, e muito menos quem foi o seu autor intelectual. Ouvi de uma fonte uma história interessante. Disse que cada operador do direito tem um estilo muito pessoal de redigir os seus textos e também uma visão muito particular de interpretação das leis. Seguindo essa linha de pensamento, digo, com todo respeito aos advogados de porta de cadeia, que a minuta do golpe não foi redigida por um deles. Por exigir um conhecimento muito aprofundado do direito constitucional. Cheguei a essa conclusão depois de conversar com várias fontes sobre o assunto, incluindo juízes federais e desembargadores que conheci na década de 90, respeitados por seus colegas e jornalistas como pessoas de grande conhecimento jurídico.
Portanto, a pista para chegar ao autor intelectual da minuta do golpe e a rota que ele seguiu dentro do governo não está nem nas digitais e muito menos nos rastros de DNA eventualmente encontrados no documento. Está na maneira como foi redigido o texto e na interpretação dada para a lei. Durante todo o seu governo, Bolsonaro sempre esteve cercado de juristas que davam a sua opinião a cada tentativa de golpe. Temos muitas e interessantes matérias publicadas, como a da repórter Monica Gugliano, da revista Piauí, em agosto de 2020, com título “Vou intervir!”, que conta a história do dia em que Bolsonaro decidiu que iria mandar as Forças Armadas destituírem os ministros do STF porque um deles, Celso de Mello, consultara a Procuradoria-Geral da República (PGR) para saber se mandava apreender os celulares do presidente da República e do seu filho Carlos, vereador do Rio de Janeiro, para investigar uma notícia-crime contra eles feita por três partidos. Vários juristas, ministros generais e o então titular do Ministério da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça, foram ouvidos pelo presidente sobre a sua intenção de destituir os ministro do STF. No final, ele desistiu da ideia. Lembro que durante os quatro anos do governo do ex-presidente houve um debate constante e acalorado entre os juristas sobre a história das Forças Armadas serem a guardiã da paz entre os poderes. Ficou claro no final do debate que a Constituição não determina a função de guardiões aos militares. Aqui, chamo a atenção dos meus colegas repórteres para o seguinte. Tem sido uma tática do movimento bolsonarista espalhar a sua versão como se fosse a única verdade sobre os debates a respeito da Constituição. Lembram da expressão do ex-presidente: “Jogo dentro das quatro linhas da Constituição”. É assim que eles mobilizam as suas redes sociais. A minuta do golpe se enquadra dentro desse perfil.
A minuta complicou bastante a vida de Torres, o ex-ministro da Justiça. Existe entre os comentaristas políticos um comentário de que ele poderia fazer delação premiada e que os líderes bolsonaristas temem que isso aconteça. Tenho as minhas dúvidas de que isso aconteça por uma série de motivos, vou citar dois que considero importantes. O primeiro é que a deleção premiada foi desmoralizada pelo então juiz Sergio Moro (hoje senador), da Operação Lava Jato – muitas matérias sobre o assunto no site The Intercept Brasil. O segundo motivo é que Torres pode ter decidido que sua melhor chance de sair da enrascada em que se meteu é negociando com seguidores do movimento bolsonarista que ocupam importantes posições dentro dos poderes da República. Torres é delegado federal e sabe quem é quem e onde estão os apoiadores do ex-presidente.