Não tem como deixar de comparar os motivos que causaram a tragédia da Boate Kiss, em Santa Maria, consumida pelas chamas na madrugada de 27 de janeiro de 2013, causando a morte de 247 pessoas e ferimentos em 636, com o incêndio da Pousada Garoa, na madrugada de sexta-feira, 26/4, na Avenida Farrapos, em Porto Alegre (RS), que resultou em 10 mortos e 15 feridos. Vamos aos fatos que mostram que a tragédia da Garoa é uma consequência da falta de punição aos culpados pelo incêndio da Kiss. Estava de férias quando ouvi as primeiras notícias sobre a boate, no amanhecer de 27 de janeiro. Naquele domingo, próximo ao meio-dia, as minhas férias foram canceladas e fui chamado de volta à redação para me integrar a uma força-tarefa que seria enviada a Santa Maria, uma cidade de porte médio do interior do Rio Grande do Sul, para trabalhar no caso. Fiquei quase dois meses na cidade diretamente envolvido na cobertura dos desdobramentos da tragédia. Metade desse tempo eu levei para entender o emaranhado de leis, decretos, normas e demais regulamentações jurídicas que a burocracia municipal, estadual e federal impõe para o funcionamento de casas noturnas.
Sou um repórter investigativo experiente e muito viajado. Digo que não foi fácil entender o que tinha acontecido e por que aconteceu. É um documento importante para as atuais gerações de repórteres e interessados entenderem a história da Kiss o relatório do inquérito policial, que levou 55 dias para ser feito, somando 13 mil páginas divididas em cinco volumes, assinado pelo então delegado regional da Polícia Civil Marcelo Arigony. Em dezembro de 2021, os indiciados pelo incêndio foram julgados e condenados: o dono da boate Elissandro Spohr, o Kiko, pegou uma pena de 22 anos e seis meses, seu sócio, Mauro Hoffmann, foi sentenciado a 19 anos, e os músicos da banda Gurizada Fandangueira (que se apresentavam na casa e usaram um artefato pirotécnico que acabou causando o fogo) Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão, que pegaram 18 anos de cadeia. Em agosto de 2022, os desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) anularam o julgamento. O Ministério Público Estadual (MPE) recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que confirmou a decisão do TJ. O Ministério Público Federal recorreu então ao Supremo Tribunal Federal (STF), que ainda não decidiu a história. Já soma 11 anos a espera por uma decisão da Justiça sobre o caso Kiss. Não vou discutir os prazos legais e muito menos pregar contra o ordenamento jurídico do país. Vou afirmar que foram justamente esses 11 anos o berçário em que nasceram, cresceram e se fortificaram as razões que levaram à tragédia da Garoa. A pousada faz parte de uma rede de 35 abrigos, fundada em 2010, que vende vagas para a prefeitura de Porto Alegre acomodar pessoas em situação de rua. O prédio não tinha Plano de Prevenção e Proteção contra Incêndios (PPCI) e o material usado na construção transformou o lugar no que os construtores chamam de “ratoeira”, uma armadilha. Aproveitando-se da lentidão na Justiça no caso Kiss, as autoridades flexibilizaram, ao longo desses 11 anos, várias leis e normas sobre segurança contra incêndios.
O prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, 65 anos (MDB), que é candidato à reeleição, deu uma longa entrevista coletiva para demonstrar que a sua administração não tem nada a ver com as condições da Garoa – matérias na internet. A questão não é tão simples como pensa o prefeito. Lembro que o então prefeito de Santa Maria em 2013, Cezar Schirmer, 72 anos, um quadro histórico do MDB, com destaque na luta contra a ditadura militar (1964 a 1985) e de um currículo respeitável na administração pública, foi indiciado no inquérito policial da Kiss. O que resultou em um abalo na sua carreira política. Atualmente, ele é vereador em Porto Alegre. No caso da Garoa, o inquérito policial deverá apurar o que aconteceu e qual é a responsabilidade da administração de Melo no episódio. Há muitas pontas soltas na história. Uma delas envolve o empresário e sócio-administrador da rede Garoa, André Luiz Kologeski da Silva. Ele respondeu a dois processos por estelionato na Justiça – há matérias na internet sobre aluguel de imóveis. E quem são os outros proprietários da rede Garoa?
As imagens do incêndio são fortes. Aqui quero dizer o seguinte. Não podemos varrer do cenário o fato de que estamos um ano eleitoral, justamente a disputa mais acirrada do calendário político brasileiro, quando estão em jogo as prefeituras e as câmaras de vereadores. Portanto, o incêndio da pousada deverá estar presente na campanha. É do jogo. Mas há um fato maior nessa questão que precisa ser lembrado. Trata-se do vácuo criado pela lentidão da tramitação do processo da Kiss na Justiça. Enquanto essa história não se resolver, aventureiros continuarão pressionando por flexibilizações na legislação de proteção contra incêndios. É assim que funciona o tal mercado ao redor do mundo. Ao escrever este texto, optei por ser didático para facilitar a vida dos meus colegas jovens repórteres envolvidos na cobertura do dia a dia das redações. Entender o emaranhado de leis, portarias, decretos e demais normas legais que regulamentam a segurança de locais públicos não é uma tarefa fácil e muito menos está disponível para o atarefado jornalista da cobertura diária, sempre envolvido com várias pautas e com muito pouco tempo para apurar os fatos. Mas é justamente o repórter da cobertura diária que constrói a opinião pública com as suas matérias. Para arrematar a nossa conversa vou lembrar a frase que ouvi de um peão de estância, pai de um jovem universitário que morreu no incêndio da Kiss. Na ocasião, ele me disse: “Consolo-me em saber que a morte do meu filho servirá para impedir que outros jovens tenham o mesmo destino”.