Usando a linguagem simples, elegante e direta dos repórteres de polícia para descrever o que aconteceu em Brasília (DF) na quarta-feira (13/09), 248 dias depois do 8 de janeiro. Foi um dia que entrou para a história política do Brasil, por ter se iniciado o julgamento, no Supremo Tribunal Federal (STF), dos autores da tentativa de golpe de estado de 8 de janeiro. Sou um velho repórter estradeiro e lembro-me que em 1964 quem foi parar na cadeia foram os que se opuseram ao golpe militar. Aécio Lúcio Costa Pereira, 51 anos, Thiago de Assis Mathar, 43, Moacir José dos Santos, 52, e Matheus Lima Carvalho, 24, são os primeiros quatro a serem julgados de um contingente de 1,3 mil pessoas que fizeram parte de um grupo de mais de 2 mil bolsonaristas radicalizados que, em 8 de janeiro, invadiram e destruíram tudo que encontraram pela frente nos prédios do Congresso, do Palácio do Planalto e do STF, na Praça dos Três Poderes, em Brasília. A confusão tinha o objetivo de provocar o caos e derrubar o recém-eleito presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que derrotou o então presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL) – a história toda está disponível na internet.
O primeiro a ser julgado foi Pereira, ex-funcionário da Sabesp, a empresa de saneamento do governo do estado de São Paulo. Foi defendido pelo advogado e ex-desembargador Sebastião Coelho, uma figura polêmica que também está sendo investigado por ter feito pregações a favor do golpe de estado. Ele defendeu a tese de que o 8 de janeiro não foi uma tentativa de golpe porque os responsáveis pelo quebra-quebra não portavam armas de fogo. O advogado usou a maior parte do seu tempo para fazer promoção pessoal, falando contra os ministros do STF e defendendo teses a favor da intervenção militar. O ministro e relator do processo, Alexandre de Moraes, rebateu o advogado perguntando se o acusado “estava fazendo um passeio no parque” na ocasião em que participou da quebradeira nos prédios da Praça dos Três Poderes. O voto do ministro Moraes condena Pereira a 17 anos de prisão, sendo 15 em regime fechado. Os outros 10 ministros devem votar durante as próximas três sessões do julgamento. Não vou discutir o voto do ministro e a defesa do advogado. Convido os colegas e leitores a refletirem sobre a importância do julgamento na disputa política do Brasil. Começo essa reflexão citando o primeiro presidente da República do golpe militar de 1964, marechal Humberto Castelo Branco (1964 a 1967). Num pronunciamento no auditório da Escola de Comando e Estado-Maior, ele citou as “vivandeiras alvoroçadas”, referindo-se aos civis que bateram às portas dos quartéis pedindo que os militares derrubassem o presidente da República Juscelino Kubitschek (1956 a 1961) e depois João Goulart, o Jango do antigo PTB (1961 a 1964). Vivandeiras eram mulheres que vendiam mantimentos nos quartéis ou os levavam acompanhando a marcha da tropa. Em 1964, Castelo Branco deu ouvidos às vivandeiras e foi um dos líderes do golpe que durou até 1985. Lembro que logo após a derrota do ex-presidente Bolsonaro os seus seguidores, espalhados por todo o Brasil, acamparam na frente dos quartéis pedindo que as Forças Armadas derrubassem o presidente eleito. A história dos acampamentos das “vivandeiras” é curiosa e merece um livro, aliás, vários livros. Por que não houve golpe? Por vários motivos, vou citar três. O primeiro é que a redemocratização do país, iniciada em 1985 e consolidada com a publicação da Constituição de 1988, profissionalizou as Forças Armadas. Essa profissionalização foi uma barreira ao alastramento da “bolsonarização” nos quartéis. Com isso, ela ficou reduzida a um pequeno grupo que apoiou e trabalhou pelo então presidente não por ideologia ou qualquer outro sentimento que não fosse dinheiro (salários na ocupação de cargos na administração civil federal). O diagnóstico dos especialistas é que a influência do ex-presidente nas Forças Armadas não comprometeu o núcleo legalista do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.
O segundo motivo pelo qual que não houve golpe é que em 1964 o Brasil era um país rural, com escassas e precárias estradas e comunicação. Portanto, era uma presa fácil para aventureiros. Hoje, não é mais. Existem fartas e boas estradas, uma frota respeitável de veículos e uma razoável rede de comunicação (telefonia, internet e outras mídias). E estamos entre as dez maiores economias do mundo. E, por último, não houve o apoio dos Estados Unidos e de nenhum outro país democrático a um golpe de estado. Tudo que falei é sobre o passado. Mas são fatos que julguei ser necessário lembrá-los para contextualizar a nossa conversa. O que aconteceu no julgamento dos réus da tentativa de golpe vai influenciar o futuro do país. Por quê? Por ter sido pedagógico, passando a mensagem de que atentar contra a democracia é crime e dá cadeia. É um importante marco civilizatório no Brasil. A única garantia que se tem referente ao futuro do país é que quem pisar na bola vai se complicar com a Justiça. Lembro que a democracia nos Estados Unidos, uma das mais sólidas do mundo, foi afrontada em 6 de janeiro de 2021 pelos seguidores do então presidente Donald Trump (republicano), que invadiram e vandalizaram o Capitólio (o prédio do Congresso) para contestar a eleição de Joe Biden (democrata). A justiça americana pegou pesado com os invasores do Capitólio – há matérias na internet.
O início do julgamento dos envolvidos nos atos de 8 de janeiro não significa que chegou ao fim a investigação da Polícia Federal (PF). Muito pelo contrário. Os agentes federais seguem no rastro dos financiadores e dos planejadores dos atos terroristas. E pode haver surpresas nas próximas semanas. Trazidas pela delação premiada feita pelo ex-ajudante de ordens do ex-presidente, o tenente-coronel Mauro Cid. Pelas escassas informações que circulam na imprensa sobre a delação, ela lançará luzes na busca de provas que levarão aos arquitetos do 8 de janeiro. O ex-presidente Bolsonaro foi imobilizado pela enxurrada de processos e denúncias feitas pela Justiça que o tornaram inelegível por oito anos. Mas segue livre e se fortalece a cada dia o movimento bolsonarista, um aglomerado de várias tendências políticas de extrema direita, oportunistas, terraplanistas e ocultistas. Pequenos grupos que ganharam visibilidade graças ao prestígio político do ex-presidente. Resta saber qual é o fôlego político do bolsonarismo sem Bolsonaro.