Um absurdo grande demais para ser esquecido. Assim podem ser descritas as mortes de pacientes da Covid-19 por falta de oxigênio nos hospitais de Manaus (AM) e do interior do Pará. A grandiosidade dos fatos colocou contra a parede a política de governo negacionista do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em relação à letalidade e ao poder de contágio do coronavírus, executada pelo seu ministro da Saúde, o general da ativa do Exército Eduardo Pazuello. O símbolo dessa política de governo é um kit de medicamentos sem eficácia cientificamente comprovada, entre eles a cloroquina, distribuído pelo Ministério da Saúde para ser usado preventivamente contra a Covid-19. O procurador-geral da República, Augusto Aras, abriu um procedimento de investigação sobre a falta de oxigênio nos hospitais do Amazonas e do Pará e também sobre o uso de drogas sem eficácia científica. Os senadores conseguiram reunir assinaturas suficientes para pedir uma CPI sobre a Covid-19. Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) também estão exigindo do governo explicações sobre o assunto. Soma-se a isso tudo um extraordinário volume de matérias diárias nos jornais nacionais e estrangeiros sobre o assunto. Qual é a estratégia do presidente para lidar com o problema? É sobre isso que vou conversar com os meus colegas repórteres e os leitores.
Independentemente das questões legais que possam tomar corpo por conta do procedimento instalado por Aras ou o real potencial de paralisar o governo que tem a CPI do Senado caso seja instalada e decole, a grande preocupação do presidente é com a sua imagem perante o público. Por quê? De todos os presidentes que o Brasil já teve, Bolsonaro é o primeiro que nasceu, cresceu e consolidou sua imagem nos noticiários dos jornais e nas redes sociais apostando na máxima do “falem bem ou falem mal, mas falem de mim”. A cloroquina e outras drogas sem efeito do kit do Ministério da Saúde são as digitais do presidente e do ministro Pazuello nas 220 mil mortes de brasileiros causadas pelo vírus, na falta de organização que está resultando no atraso na vacinação da população e nas mortes por asfixia em Manaus e no interior do Pará. A primeira providência do presidente foi substituir a caixa de cloroquina, que era exibida por ele como se fosse um troféu nas suas aparições publicações, pela de leite condensado. Quais as vantagens para a imagem do presidente a troca da cloroquina pelo leite condensado? A droga é um símbolo em decadência devido à pressão das autoridades. O leite alçou a categoria de símbolo de energia para as tropas das Forças Armadas no final do mês passado. Era um dos itens, entre chicletes e outras guloseimas, comprados por R$ 2,2 bilhões pelo governo para distribuir entre os ministérios, sendo o principal consumidor o Ministério da Defesa.
Assim que a história explodiu na imprensa, o presidente foi almoçar em uma churrascaria em Brasília. Em um discurso, justificou os gastos e acrescentou: “O leite condensado é para enfiar no rabo da imprensa”. Na quinta-feira (04/02), falando na inauguração de um parque esportivo em Cascavel (PR), Bolsonaro mostrou uma caixa de leite condensado e lembrou, sem citar diretamente, que era para enfiar no rabo da imprensa. Ou seja: o presidente está consolidando a imagem do leite condensado como energia para as tropas militares e humilhação para a imprensa. Assisti a todo o discurso do presidente em Cascavel, cidade do oeste paranaense povoada por gaúchos. A fala dele é simples e recheada de símbolos. Por exemplo, disse que foi a “vontade de Deus que me tornou presidente”. É do jogo um presidente falar bem do seu governo. Seria um absurdo se falasse mal. Mas a maneira como Bolsonaro o faz isso é inédita. Ele mistura fake news com fatos verdadeiros e citações bíblicas como se fossem personagens de uma história com início, meio e fim. Toda a fala do presidente é composta de várias pequenas histórias.
Arrematando a nossa conversa. Tenho dito nas minhas palestras e conversas com colegas e leitores que é necessário esmiuçar o discurso do presidente para entender como as coisas funcionam dentro das quatro paredes do governo federal. Esse conhecimento aumenta a precisão das matérias. Lembro que hoje, pelo conhecimento que possuímos, fazer qualquer previsão sobre o futuro dos acontecimentos é dar um tiro no escuro, porque a velocidade com que as coisas acontecem nas entranhas do poder é tal que se assemelha a uma montanha-russa. O que já temos como certo. Bolsonaro concentra todo o poder nas suas mãos. Nada acontece dentro do governo sem a sua autorização. E quando acontece, ele boicota. O Brasil é um país muito grande e complexo. Não tem como concentrar tudo na mão de uma só pessoa. Mesmo que cercada por ministros que são simples executores da vontade presidencial, como é o caso no atual governo. Na prática, a administração federal está emperrada. E o resto é a confusão de todos os dias. Ou seja, uma nova surpresa a cada dia. Hoje é o leite condensado no lugar da cloroquina. Amanhã, vamos descobrir amanhã.