Até os dias atuais, as Forças Armadas só têm subido os morros do Rio de Janeiro em busca de bandidos. Eles cercam as favelas com tanques, helicópteros e soldados armados até os dentes. Mas as Forças Armadas dominam uma tecnologia prática e barata que torna um lugar insalubre em habitável em questão de horas. E que pode dar uma chance aos favelados ajudando a impedir que o coronavírus se alastre nas favelas como fogo em palheiro seco umedecido com gasolina. Claro, o ideal seria a urbanização da área, a construção de residências e saneamento básico. Mas, mesmo que o governo tivesse vontade política de fazer isso, não teria tempo. O coronavírus está se alastrando no Brasil e alguma coisa precisa ser feita agora.
Usei o exemplo das favelas cariocas porque o Rio de Janeiro é o cartão-postal do Brasil. Claro, não foi apenas ali que as Forças Armadas foram chamadas a intervir. Mas a imagem mais popular é a dos soldados nos morros do Rio: foram 25 intervenções nas últimas duas décadas, a última em 2018. Faz parte dos manuais militares de treinamento das tropas ensinar o soldado, principalmente o de infantaria, que é aquele que participa do combate corpo a corpo no campo de batalha, a tornar uma trincheira cavada às pressas em um lugar habitável. Por quê? Durante as guerras, as doenças trazidas pela insalubridade das trincheiras são tão mortais para o combatente como as balas do inimigo. Há documentários que mostram essa realidade, principalmente da 1ª Guerra Mundial, que foi um conflito de trincheiras. O filme 1917 dá uma boa ideia do que eram as trincheiras. As guerras modernas são de movimento. O soldado passa pouco tempo dentro de uma trincheira. Mas se não torná-la um lugar salubre, pode ser o seu túmulo.
Vi como é essa tecnologia em quatro ocasiões. A primeira foi prestando o serviço militar obrigatório. Durante 10 meses e 15 dias fui soldado da infantaria e aprendi que, usando técnicas simples, como não deixar o lixo perto da comida, se pode tornar um lugar habitável. A segunda foi já como repórter, nos acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), durante as ocupações de fazendas. As fossas sanitárias eram cavadas no chão, longe dos suprimentos de água potável. Outra ocasião foi durante a Guerra Civil de Angola (1975 a 2002). As camas dos soldados eram erguidas sobre estacas. E, por último, no meio da Selva Amazônica usadas por organizações não governamentais para ajudar populações pobres.
O princípio dessa tecnologia é simples. Usa o que tem à mão para tornar o lugar habitável. Vejamos. Na maioria das favelas cariocas o bem mais precioso é água potável. A instalação de locais para lavar as mãos com água corrente, que podem ser tonéis de plástico, como vi em Angola, será de grande ajuda para a população. Mais: o Exército tem os chamados “chuveiros de campanha”, que são estruturas simples de madeira, canos de plástico e latões que podem ser instalados nas favelas. O sabão, fundamental para impedir o avanço do vírus, pode ser produzido em casa. Nos anos 60 existia o Projeto Rondon, que era coordenado pelas Forças Armadas e consistia em levar técnicos e estudantes universitários para os mais distantes rincões do Brasil para ajudar as populações carentes. A tecnologia de atendimento desenvolvida pelo projeto deve estar em algum arquivo empoeirado do governo.
Meus colegas repórteres. Nós temos que começar a insistir nas nossas matérias para que alguma coisa seja feita e com urgência para proteger as populações pobres contra o coronavírus. Estamos publicando uma enxurrada de informações sobre o vírus que exigem das pessoas terem uma estrutura ao seu dispor para colocá-las em prática. Mas o país tem 13 milhões de desempregados e milhares de pessoas vivendo em favelas urbanas e rurais. Como eles vão sobreviver? Não é por outro motivo que as terreiras de umbanda nas vilas pobres do Brasil estão cheias de gente pedindo aos seus pais de santo que façam rezas para livrá-los do mal. Os pastores pentecostais também estão fazendo as suas rezas. Pedir proteção a Deus é uma questão de foro íntimo, um direito garantido pela Constituição. O problema é que eles só têm isso. Se duvidar, meu colega repórter, basta entrar em uma favela e ver com os próprios olhos. Ou nos grotões do Brasil. Alguma coisa tem que ser feita, é urgente. É simples assim.