Na sexta-feira (26/07) estava escrevendo um texto na frente da TV, sem som, que transmitia a abertura dos Jogos Olímpicos de Paris, França. Vez ou outra, a exuberância do espetáculo chamava a minha atenção e eu levantava o som da TV por alguns minutos. Continuei com esse comportamento por bastante tempo até que recebi uma mensagem pelo WhatsApp de uma fonte, um cara que conheci adolescente na década de 80, quando fiz uma reportagem sobre a Tradição, Família e Propriedade (TFP), uma organização que combatia o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Nos dias atuais, ele é um pequeno empresário bolsonarista raiz. No recado que recebi, esbravejava contra o espetáculo de abertura das Olimpíadas, mais especificamente contra a imitação do quadro A Última Ceia, de Leonardo da Vinci, feita por drag queens, um modelo transgênero e um cantor nu como Dionísio, o deus do vinho da mitologia grega. A irritação da fonte me chamou a atenção. Porque ele não é apenas mais um militante bolsonarista raiz. É muito mais que isso. O seu berço é a TFP, uma organização de extrema direita fundada em 1960, que foi um dos esteios do golpe militar de 1964 e, na época, se espalhou por 26 países em cinco continentes – há matérias e documentos na internet.
Antes de continuar a nossa conversa uma explicação que julgo necessária. Thomas Jolly, diretor artístico da abertura das Olimpíadas, negou que tenha feito uma paródia da Última Ceia – há várias notícias na internet. Não vou entrar no assunto por entender ser pauta dos noticiários diários. Vou falar do uso que a extrema direita vem fazendo do episódio. Voltando a nossa conversa. Depois da troca de recados parei de escrever e comecei a prestar atenção à solenidade de abertura das Olimpíadas. Assisti a um espetáculo maravilhoso e inédito. O conteúdo do roteiro tratava dos avanços conseguidos nos últimos tempos no campo das liberdades individuais. Exatamente tudo que a extrema direita odeia. Nos dias seguintes à abertura das Olimpíadas, onde 205 delegações desfilaram de barco durante quatro horas ao longo de seis quilômetros do rio Sena, começaram a pipocar por vários cantos do mundo protestos na imprensa feitos por militantes e parlamentares da extrema direita. No Brasil, vários deputados e seguidores do ex-presidente da República Jair Bolsonaro, 69 anos, protestaram contra a imitação da Última Ceia. Incluindo a ex-primeira-dama Michelle. Fato é o seguinte. Há vários motivos para a extrema direita estar irritada com a solenidade. Mas um fato chama a atenção. No final de junho houve o primeiro turno das eleições legislativas na França, convocadas pelo presidente Emmanuel Macron, 46 anos. Na ocasião, o Reagrupamento Nacional (RN), partido de extrema direita de Marine Le Pen, 55 anos, fez 33% dos votos. Tudo indicava que faria maioria no segundo turno, marcado para 7 de julho. Se isso acontecesse, ela poderia indicar o primeiro-ministro. Uma estratégia política feita por Macron costurou uma aliança entre os partidos de esquerda e de centro e conseguiu fazer maioria no segundo turno das eleições, derrotando Le Pen.
A pergunta aqui é a seguinte. Os opositores de Macron viram na realização das Olimpíadas uma oportunidade para complicar a vida do presidente. Duvido. O fato é que Macron arriscou todo o seu prestígio político apostando no formato da solenidade de abertura das Olimpíadas. Tudo deu certo. Apesar da chuva e de vândalos terem causado danos às linhas de trens de alta velocidade (TAG) horas antes da cerimônia, a grandiosidade da abertura das Olimpíadas não foi ofuscada. Houve problemas. Mas foram solucionados. Os ataques dos vândalos aos TAG estão sendo investigados pelas forças policiais. O que houve de estranho nesse atentado é que tem sido tradição os responsáveis assumirem a autoria nas primeiras 24 horas. Não foi o que aconteceu desta vez. Se isso tem algum significado importante saberemos nas próximas semanas. Não acredito que a solenidade de abertura das Olimpíadas desaparecerá das páginas dos jornais com o final dos jogos. Temas que dizem respeito às liberdades sexuais devem reaparecer no debate político, em especial na disputa pela presidência dos Estados Unidos entre Donald Trump (republicano), 78 anos, e Kamala Harris (democrata), 59 anos, atual vice-presidente do país. Kamala assumiu a candidatura com a desistência do presidente Joe Biden (democrata), 81 anos, de concorrer à reeleição. Biden desistiu da candidatura no dia 21 de julho, por pressão do seu partido, depois que sofreu um apagão mental durante um debate com Trump no final de junho. Trump é defensor das pautas da extrema direita, como a rejeição ao aborto. Kamala é a favor. Não será de se estranhar se a paródia da Santa Ceia for parar na publicidade da campanha política americana.
No Brasil, nas eleições municipais que acontecem em outubro a presença da questão do aborto nos debates pelas prefeituras e câmaras municipais das capitais é certa. Lembro que o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), 49 anos, pastor da Igreja Assembleia de Deus, conseguiu aprovar o regime de urgência para a votação, pela Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei (PL) 1904/24, que torna crime de homicídio o aborto após a 22ª semana de gestação, incluindo a gravidez por estupro de menor. A aprovação provocou uma reação pública contrária em várias cidades brasileiras. Tratei do assunto, em 18 de junho, no post Quem são todos os criadores do PL do Aborto? O pastor Malafaia é um deles? Atualmente, o PL está parado no Congresso, sem prazo para tramitar. Para concluir a nossa conversa. A rearticulação da extrema direita ao redor do mundo, em especial na França, nos Estados Unidos, no Brasil e na Argentina, tornou a disputa política tóxica. Em alguns casos, o ambiente lembra a Alemanha dos anos 30, quando ganhou corpo o nazismo de Adolf Hitler, e a Itália, com o fascismo de Benito Mussolini. Dentro de um ambiente desses, tudo é motivo para rolo.