Pode ter sido só um argumento usado no meio de uma discussão sem maiores intenções pelo ministro da Saúde, o cardiologista Marcelo Queiroga, na terça-feira (08/06) durante o seu segundo depoimento na Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado da Covid-19, a CPI da Covid. O ministro disse várias vezes, e não foi contestado por ninguém, que o caso da cloroquina divide os médicos. Usou isso como justificativa para não dar uma resposta objetiva sobre o assunto para os senadores, principalmente os que envolviam o presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), considerado o maior defensor do uso da droga contra a Covid-19. Contrariando cientistas do mundo inteiro, que afirmam ser a cloroquina ineficaz contra o vírus e causar efeitos colaterais sérios nos doentes. Assisti ao depoimento do ministro e depois troquei ideias com colegas sobre a sessão da CPI da Covid.
E foi em uma dessas conversas que um colega veio com a pergunta. “De onde o ministro tirou essa informação de que a classe médica está dividida no caso da cloroquina?” Respondi: “Isso aí está nos nossos textos. Não é novidade”. Ele insistiu: “Estamos falando de quantos médicos?”. Respondi, com sinceridade: “Nem imagino”. Antes de seguir com a história, vou fazer um comentário que considero relevante. Na redação, quando estávamos fazendo uma reportagem a “quatro mãos” ou mais, tínhamos o costume de nos reunir em um boteco e discutir exaustivamente a pauta e depois o texto final antes de entregá-lo nas mãos dos editores. Enquanto se empilhavam garrafas vazias de cerveja (ou de vinho, no inverno), discutíamos como tornar o material mais atrativo e também buscávamos falhas na apuração. Os publicitários têm um nome em inglês para isso: “brainstorm” – tempestade de ideias. Um editor chamava de “surrar a matéria”. Foi da redação que eu trouxe a mania de discutir as matérias com os colegas, buscando resolver os seus problemas e melhorá-las. Voltando a nossa conversa. A questão dos médicos envolvidos com a cloroquina ganhou destaque na CPI da Covid. Portanto, é hora de sabermos quem são, quantos são e por onde andam. Por quê? Simples. Devemos passar para o nosso leitor uma informação precisa sobre o que estamos falando. Vejam bem. O ministro disse que a cloroquina divide os médicos. Ele se referia aos 500 mil profissionais espalhados pelo vasto território brasileiro? A citação que fez tem a ver com alguma pesquisa? Eu procurei uma pesquisa nacional sobre o assunto e não encontrei. Só muito chute. O Ministério da Saúde tem esse número? Se tem, ele não está disponível.
Pela maneira como o ministro falou ele parecia se referir a todos os médicos existentes no país divididos por dois. Vamos admitir que o ministro fez a declaração sem segundas intenções. Mas a ideia que passa para o leitor é que ele está falando de metade da classe médica, 250 mil. Nós, jornalistas, não sabemos a dimensão do grupo a que chamamos de “médicos do Bolsonaro”. Só sabemos que são ruidosos. Aos poucos, os senadores da CPI da Covid estão conseguindo dimensionar o tamanho desse grupo. Lembro o seguinte. Um dos pilares do governo do presidente Bolsonaro são as fake news. E um modo eficiente de espalhar inverdades é infiltrar entre os jornalistas informações inocentes e falsas que de tanto que nós as repetimos tornam-se verdades, tipo a que o ministro disse. Portanto, tudo o que vem do lado do governo merece ser olhado com muito calma. Principalmente informações que parecem se referir a algo grandioso. Mas na verdade são ações de um pequeno grupo. Aqui é o seguinte. Uma reportagem é construída de fatos. E se um deles não estiver bem explicado compromete o todo. Arrematando a conversa. Vivemos tempos esquisitos. Jamais a imprensa do Brasil enfrentou uma máquina tão poderosa de fake news operada pelo governo federal. Dentro da nossa realidade atual, temos que verificar tudo. Olha, vivi em redação de 1979 até 2014. Tive o privilégio de poder trabalhar vários dias em uma única reportagem. Dentro dessa realidade há tempo suficiente para verificar o texto linha por linha para detectar eventuais erros. Não é o que acontece hoje nas redações, onde os repórteres ocupados com a parte mais importante da publicação, que é a cobertura do dia a dia, fazem meia dúzia de matérias diárias – texto, foto, vídeo e áudio. Mas, ao contrário da minha geração de repórteres, a atual tem uma vasta quantidade de novas tecnologias à disposição para cruzar informações. Só uma coisa não muda entre nós repórteres desde que se escrevia as matérias com pena de galinha molhada no tinteiro: a desconfiança de que tem alguém tentando colocar uma casca de banana no nosso caminho.