Fazer a cobertura de uma grande tragédia trabalhando na redação de um jornal é como trocar o pneu de um carro andando. O repórter vai aprendendo sobre o assunto enquanto trabalha na enxurrada de informações anotadas no seu bloco. Era difícil no tempo que as empresas de comunicação tinham dinheiro e as redações, abundância de repórteres, editores e pesquisadores, e podiam enviar imediatamente jornalistas para os locais dos acontecimentos. Nos dias atuais, fazer a cobertura de uma grande tragédia é muito mais que trocar o pneu de um carro em movimento. É trocar todo o rodado. Porque o jornalismo deixou de ser o principal produto da maioria das grandes empresas de comunicação. Isso significou o esvaziamento das redações, e os colegas que não foram demitidos estão fazendo múltiplas tarefas (texto, imagem e áudio) em troca de um dos salários mais baixos já pagos à categoria. Claro, as verbas para viagens foram reduzidas ao mínimo. Aliás, sempre que pinta uma crise na redação as viagens são a primeira vítima.
Não vou discutir a crise da imprensa do Brasil, muito semelhante à que está acontecendo em outros cantos do mundo, em especial nos Estados Unidos. Fiz toda essa conversa por considerá-la fundamental para falarmos sobre o que aconteceu na quarta-feira (05/04) em Blumenau (SC). Um homem de 25 anos pulou o muro da Creche Cantinho do Bom Pastor e matou a machadadas e facadas Bernado Cunha Machado, 5 anos, Bernardo Pabest da Cunha, 4, Enzo Marchesin Barbosa, 4, e Larissa Maia Toldo, 7, e feriu outras três crianças. Em maio de 2021, na cidade de Saudades, oeste de Santa Catarina, um jovem de 19 anos invadiu a Creche Aquarela e matou três crianças, dois professores e feriu outras pessoas. No Brasil, nos últimos 21 anos aconteceram 22 ataques semelhantes aos de Blumenau e Saudades, sendo que de 2019 até abril de 2023 houve 12 casos. Esse é o quadro. E qual é a parte que toca para nós jornalistas? É a de jogar luz nos cantos escuros desses acontecimentos. Até agora, a cobertura tem sido fiel ao roteiro que sempre foi seguido nesses casos desde os tempos de abundância de dinheiro e gente nas redações. Entrevista-se especialistas no assunto, publica-se a versão da investigação policial (geralmente cheia de lacunas, porque os agentes não tiveram tempo de avaliar todos os fatos) e a dor das famílias das vítimas. A contribuição da imprensa para o esclarecimento desses casos é a investigação jornalística, que sumiu das redações porque não há mais gente, dinheiro e muito menos a decisão política dos dirigentes das grandes empresas de comunicação de investir no jornalismo raiz. Preferem usar o prestígio que as suas marcas acumularam fazendo jornalismo durante muitos anos para vender eventos comerciais e entretenimento. A pergunta é: até quando essas marcas vão sobreviver como sinônimo de jornalismo?
Por tudo que publicamos sobre o caso de Blumenau e dos outros acontecimendos semelhantes e o que eles têm em comum chegamos à conclusão que existe um somatório de motivos, todos ligados ao discurso do ódio, como a imprensa chama as publicações nas redes sociais de manifestações que pregam a violência, o preconceito e outros absurdos. O discurso do ódio não começou com a invenção das redes sociais. Ele perambula pelo mundo há muito tempo. E emergiu de uma maneira incrível nos anos 30, quando surgiu o nazismo, na Alemanha de Adolf Hitler, e o fascismo, na Itália de Benito Mussolini. Na época atual, as redes sociais deram mais visibilidade ao discurso do ódio e ajudaram a eleger os presidentes Donald Trump (republicano), nos Estados Unidos, em 2016, e Jair Bolsonaro (PL), no Brasil, em 2018. Pergunta para os colegas: durante os governos de Trump e de Bolsonaro a imprensa tinha como não colocar nas manchetes as manifestações de ódio deles? A resposta é não, porque eram as autoridades máximas dos Estados Unidos e do Brasil. Na disputa eleitoral, a defesa do ódio virou uma ferramenta largamente utilizada pelos candidatos comprometidos com a extrema direita. Para os jornalistas explicarem aos seus leitores o efeito desse comportamento na sociedade é preciso conhecer a história. O que exige uma investigação jornalística apurada porque uma grande parte desses casos não está documentada. Sobrevive na tradição oral. Portanto, exige andar por aí batendo de porta em porta em busca do conhecimento. Não é uma coisa fácil de fazer. Porque é preciso saber em que porta bater. Como nós jornalistas vamos resolver essa parada?
Uma investigação jornalística é cara, demorada e o resultado pode não ser o esperado. Portanto, é impossível para um repórter, por conta própria, fazer uma investigação e ainda custear os gastos. Mas podemos fazê-lo se nos associarmos a outros colegas, financiarmos o trabalho e depois o vendermos para um terceiro publicar. Ou mesmo colocá-lo nas redes sociais. O futuro que vem pela frente vai exigir cada vez mais informações de qualidade à disposição dos leitores. Não tem como parar os avanços da indústria de alta tecnologia. Muito menos na área da inteligência artificial. Certa vez escutei de um colega em uma mesa de boteco em Humaitá, pequena cidade do Amazonas, às margens do Rio Madeira, perdida na imensidão da Floresta Amazônica, uma conversa que nunca mais esqueci. Ele falou que a imprensa levou muitos anos para evoluir do tempo que se escrevia as matérias molhando a ponta de uma pena no tinteiro para as máquinas de escrever. Da máquina de escrever para os teclados de computadores foram algumas décadas. Nessa passagem, quem não entendeu que o computador não era apenas um substituto da máquina de escrever, mas o início de uma nova era, que colocou o conhecimento ao alcance do repórter ao simples aperto de uma tecla, ficou à beira da estrada. As novas tecnologias facilitaram a vida dos que pregam o discurso do ódio. Mas também facilitou a vida dos repórteres na busca dos fatos.