A volta do Brasil ao mapa da fome desapareceu dos jornais, sequer ficou no pé da página. É um problema grande demais para ser esquecido pelos pauteiros dos noticiários, porque atinge mais de 30 milhões de brasileiros, sendo que uma grande parte são crianças e adolescentes. O período que mais se falou no problema foi durante a última campanha eleitoral, permanecendo nas primeiras páginas durante as semanas iniciais do atual governo. Depois foi desaparecendo e, nos dias atuais, uma vez ou outra é lembrado no meio de uma matéria. Muito bem, é do jogo que os governantes e parlamentares estejam dedicando o seu tempo aos grandes temas nacionais, como economia e segurança pública. Mas a imprensa não pode se omitir. Precisamos lembrar aos governantes, deputados, senadores e outras autoridades o que está acontecendo entre as quatro paredes das casas onde os pais não têm nada para dar de comer aos seus filhos. Precisamos diariamente dar um rosto e contar a história por trás dos números que publicamos sobre a fome.
Sei como as coisas funcionam dentro das redações, onde trabalhei como repórter investigativo por quase quatro décadas. Aprendi que a disputa é feroz por espaço no noticiário e por dezenas de vezes ouvi dos editores que as páginas do jornal não são de elástico para que possam ser espichadas e acomodar todos os assuntos. Uma explicação para quem não é do ramo. Nos tempos das máquinas de escrever nas redações, quando os jornais publicavam apenas a edição em papel, os editores usavam a história do elástico para se livrar do assédio dos repórteres. Voltando a nossa conversa. Os tempos mudaram com as novas tecnologias. O jornal de papel está virando peça de museu. Mas a luta por espaço nos noticiários continua tão feroz como era antes. Há duas maneiras do repórter conseguir espaço nos noticiários. Uma delas é chutando as canelas dos editores. A outra é ser criativo e apresentar uma pauta com um olhar diferente sobre algum assunto. Já vi, li e ouvi muitas matérias sobre a fome. O que está fazendo falta é colocar um repórter a viver com uma família com filhos, durante 24 horas, para documentar como é não ter comida para as crianças. Lembro-me que quando uma mulher, em uma favela, foi entrevistada por uma repórter, ela contou como era triste segurar a mãozinha de um filho pequeno e tentá-lo fazer dormir enquanto ouvia ele reclamar que estava com fome. Na entrevista, a mãe não revelou qual a história que conta para fazer o filho esquecer a fome e dormir.
A entrevista dela me lembrou uma ocasião em que eu estava fazendo a cobertura de um conflito de terra envolvendo 1,5 mil famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no interior do Rio Grande do Sul. Os sem-terra estavam cercados pela Brigada Militar (BM), como os gaúchos chamam a polícia militar. Andando pelo acampamento tive a minha atenção despertada por algumas crianças que brincavam com umas pedras como se elas fossem carrinhos e bonecas. Perguntei para a mãe deles sobra as pedras. A história que ela me contou não esqueci e creio que vou levá-la pelo resto da vida. Disse-me que, no Natal, ela colocou as pedras debaixo da tarimba (cama improvisada) das crianças e quando elas acordaram contou uma história sobre brinquedos que viraram pedras. Na época, fiz uma matéria contando a história das mães e seus filhos no acampamento dos sem-terra. Histórias sobre as mães de famílias que estão passando fome podem ser encontradas em organizações não governamentais, postos de saúde pública, centros de assistência social de igrejas (católicas e evangélicas), terreiros de umbanda e no pequeno comércio nas favelas. Se a imprensa conseguir dar um rosto para as 30 milhões de pessoas que passam fome o tema entrará ao natural na discussão dos parlamentares e governantes envolvidos com as grandes questões nacionais. Por que faço essa afirmação? Porque o desemprego é o principal culpado pela volta do Brasil ao mapa da fome. E, por ser um assunto econômico, faz parte da principal pauta em debate entre o governo e a oposição. A fome é um dos motivos da urgência dos parlamentares votarem o arcabouço fiscal e a reforma tributária. Dois assuntos fundamentais para o país voltar a crescer. Em um exame sem profundidade nas matérias que temos publicado sobre as articulações políticas para a votação desses dois assuntos salta aos olhos a falta de uma lembrança da urgência das autoridades para resolverem a questão da fome. O que mais publicamos são as conversas a respeito das barganhas entre parlamentares e governo. Entre os colunistas políticos dos grandes jornais dá para contar nos dedos de uma mão aqueles que fazem uma análise da situação citando a urgência em resolver o problema da fome.
Lembro o seguinte: quando os terminais de computadores substituíram as máquinas de escrever nas redações, aqueles que acreditaram se tratar apenas de um avanço tecnológico acabaram comprometendo a sua profissão. Ali aconteceu uma mudança muito grande, vou citar apenas o que considero mais importante. Até então, para se ter acesso a uma pesquisa era um horror. Para conseguir uma informação era preciso solicitá-la ao departamento de arquivo e dois dias depois chegava a resposta. Hoje basta apertar uma tecla e no mesmo instante se tem acesso a uma enxurrada de informações. O nosso trabalho foi muito facilitado. Portanto, devemos usar isso para explicar melhor ao leitor os motivos pelos quais as coisas acontecem. O retorno do Brasil ao mapa da fome é uma realidade que precisa voltar a ser lembrada no debate político. E os únicos que podem lembrar os congressistas e as autoridades do governo disso somos nós. Basta apertamos uma tecla para termos acesso aos dados e ir a uma favela falar com uma família.