Imprensa já percebeu a importância dos golpistas se sentarem no banco dos réus?

Inquérito da PF descreve a ação dos bolsonaristas como a de uma organização criminosa Foto: EBC

Os brasileiros vivem um momento raro na história da disputa política. Esta é uma das escassas ocasiões em que uma tentativa de golpe de estado é tratada como um caso policial e os responsáveis vão acabar no banco dos réus. Os golpistas estão sendo chamados de organização criminosa pela Polícia Federal (PF) em um inquérito que investigou vários episódios ocorridos no final de 2022 e em 8 de janeiro de 2023 que tinham como objetivo impedir que o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT), 79 anos, assumisse o seu mandato. O inquérito policial que investigou a série de episódios soma 800 páginas e foi entregue pela PF ao ministro Alexandre de Moraes, 55 anos, do Supremo Tribunal Federal (STF). Foram indiciadas 37 pessoas, entre elas o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), 69 anos, e 25 militares (ativa, reserva e reformados). Um deles é o general da reserva Braga Netto, 67 anos, que ocupou cargos de ministro no governo Bolsonaro e era candidato a vice na chapa do então presidente, derrotado por Lula na sua tentativa de reeleição. O mais recente capítulo dessa história foi deflagrado pela Operação Contragolpe, da PF, no último dia 19, que revelou o planejamento da Operação Punhal Verde Amarelo, que pretendia matar o presidente Lula, o seu vice, Geraldo Alckmin (PSB), 72 anos, e o ministro Moraes. Em outros tempos, qualquer confusão envolvendo militares se transformava em um grande problema político. Por que agora é um caso de polícia? É sobre isso que vamos conversar.

Mas antes vamos seguir o manual do bom jornalismo e contextualizar a nossa conversa. De 1822 até os dias atuais aconteceram nove golpes de estado no Brasil, o último em 1964, quando, apoiado pelos Estados Unidos, os militares derrubaram o então presidente, o gaúcho João Goulart, o Jango do antigo PTB, e governaram o país com mão de ferro até 1985. Na época, o mundo vivia a chamada Guerra Fria (1947 a 1991), um conflito político-ideológico entre os Estados Unidos, capitalistas, e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), comunista. O Brasil era aliado dos americanos, um “satélite”, como se dizia naquele tempo. De lá para cá, muitas coisas mudaram no mundo. Em 1991, a URSS, que era formada por 15 repúblicas, entre elas a Rússia e a Ucrânia, entrou em colapso e se desmanchou. O início do fim foi em 1989, com a queda o Muro de Berlim, que separava a então Alemanha Ocidental, capitalista, da Oriental, comunista – há abundância de matérias sobre o assunto na internet. O Brasil, que era um país rural em 1964, virou a 10ª economia do mundo e se perfilou entre os maiores produtores de alimentos do planeta. Os Estados Unidos, que nos anos 60 disputavam a liderança econômica e política do mundo com a URSS, hoje têm como principal competidor a China. Feita a contextualização, voltemos a nossa conversa. O ex-presidente Bolsonaro é um representante da Guerra Fria. Ele iniciou a carreira militar como cadete na Escola de Cadetes de Campinas (SP), em 1973, e foi para a reserva como capitão. Em 1989, foi eleito vereador do Rio, e depois, por três décadas, elegeu-se deputado federal, chegando a presidente da República nas eleições de 2018. Toda a carreira política do ex-presidente foi em defesa dos militares golpistas de 1964, que nunca responderam pelos seus crimes contra a população civil. Ao contrário de outros países da América do Sul, onde os militares golpistas foram punidos, como são os casos da Argentina (1976) e do Uruguai (1973). No Brasil, eles foram anistiados pela Lei 6.683, de 1979.

Um símbolo da época dos torturadores brasileiros é coronel gaúcho Carlos Brilhante Ustra (1932 a 2015), que usava o codinome de Dr. Tibiriçá e se especializou em torturar mulheres grávidas durante os interrogatórios ilegais nos porões da ditadura militar. Ustra era o herói do ex-presidente. Na semana passada, a Operação Contragolpe, da PF, desmontou uma trama criminosa chamada de Punhal Verde Amarelo, que tinha como objetivo assassinar Lula, Alckmin e o ministro Moraes. A operação seria colocada em prática em dezembro de 2022 para impedir que Lula e Alckmin assumissem o mandato. Foi planejada e chegou a ser iniciada por quatro oficiais do Exército e um agente da PF: os majores Rafael Martins de Oliveira e Rodrigo Bezerra de Azevedo, o tenente-coronel Hélio Ferreira Lima, o general da reserva Mario Fernandes e policial federal Wladimir Matos Soares. Os militares fazem parte das Forças Especiais (FE), conhecidas como “Kids Pretos”, especializadas em missões de alto risco. Parte desse plano foi montada na casa de Braga Neto, na época ministro da Defesa e que havia concorrido a vice na chapa de Bolsonaro. Os quatro militares e o policial estão presos preventivamente. Há um vasto material sobre o assunto publicado e disponível na internet. Toda essa história de tentativa de golpe está sendo tratada como um caso policial pela imprensa. Claro que tem lá os seus reflexos políticos. Lembro que, em 30 de junho, publiquei o post Bolsonaro saiu das páginas da história política do Brasil para a policial.

Sou um velho repórter estradeiro, 74 anos, uns 40 de profissão. Lembro que, nos anos 80, qualquer coisa que a envolvia os militares era sinônimo de “crise política”. A consolidação da redemocratização do país que começou em 1985 colocou as coisas nos seus devidos lugares. Não nos esqueçamos que durante todo o seu mandato, de 2019 a 2022, o ex-presidente tentou jogar a bronca do golpe de estado no colo das Forças Armadas. Conseguiu o apoio de alguns oficiais graduados interessados em reforçar os seus soldos. Mas a parte mais significativa do Exército, da Marinha e da Aeronáutica permaneceu legalista. O que foi fundamental para o fracasso do golpe tentando em 2022, que teve o seu auge no episódio de 8 de janeiro de 2023, quando bolsonaristas radicalizados quebraram tudo que encontraram pela frente no Palácio do Planalto, no Congresso e no STF, na Praça dos Três Poderes, em Brasília (DF). A imprensa precisa ficar atenta para a importância que tem o fato de os golpistas se sentarem no banco dos réus.

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