Nota do Ministério da Saúde sobre a cloroquina é um álibi para a defesa dos médicos do Kit Covid

As covas coletivas de Manaus (AM) são provas da política negacionista do governo federal. Foto: Reprodução.

Usando o linguajar direto e sem cerimônias dos repórteres que fazem a cobertura de assuntos policiais nos noticiários diários. Não tem nada a ver com ciência a nota técnica publicada na sexta-feira (21) pelo Ministério da Saúde dizendo que a cloroquina é segura enquanto as vacinas não têm demonstrado segurança. Tem a ver com a montagem de um álibi para a defesa dos médicos e outros profissionais que defenderam e usaram o Kit Covid nos pacientes de Covid-19. Contrariando as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), de cientistas e até dos fabricantes das drogas incluídas no kit, como é o caso da cloroquina e da ivermectina, que além de não produzirem efeitos contra o vírus causam perigosos efeitos colaterais no paciente.

Até essa nota técnica, o uso do Kit Covid estava garantido pelo presidente da República, Jair Bolsonaro (PL), aconselhado pelo chamado Gabinete Paralelo da Pandemia. Gabinete que era formado por médicos, técnicos, empresários e cientistas que falavam e aconselhavam o que o presidente queria ouvir. A história toda está contada nas 1,3 mil páginas do relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19 do Senado, a CPI da Covid – há muitas matérias sobre o assunto na internet. Incluindo o presidente Bolsonaro, outras 70 pessoas são responsabilizadas pelas mais de 600 mil mortes causadas pelo vírus em episódios horríveis como foi a falta de oxigênio nos hospitais de Manaus (AM) e em cidades do interior do Pará, que levaram a óbito dezenas de pessoas por asfixia. A nota técnica é assinada pelo oftalmologista Hélio Angotti Neto, titular da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde. Tem 45 páginas e enfileira uma série de argumentos técnicos que já tiveram a sua veracidade questionada pela CPI da Covid. Não vou comentá-los porque são de domínio público e não é esse o objetivo da nossa conversa. O objetivo da nossa conversa é o dia seguinte ao término do mandato do presidente Bolsonaro. O que vai acontecer? Abertura dos inquéritos policiais e processos propostos pelo relatório da CPI da Covid na Polícia Federal (PF) e na primeira instância da Justiça Federal.

É nessa ocasião que a nota técnica da SCTIE/MS será usada pelos advogados de defesa dos indiciados pelo relatório da CPI da Covid. Os principais indiciados, Bolsonaro, o ex-ministro da Saúde e general da ativa do Exército Eduardo Pazuello e o atual titular da pasta, cardiologista Marcelo Queiroga, tem “bala na agulha” para se defender. Agora, há algumas dezenas de médicos espalhados pelo Brasil que, por identificação ideológica, deixaram a ciência de lado e mergulharam de cabeça na história do Kit Covid. E agora os parentes dos clientes desses médicos vão entrar na Justiça pedido reparação pelos danos sofridos pelos seus familiares. Essa nota técnica vai ajudar os advogados desses profissionais. A pergunta que nós jornalistas precisamos fazer: antes dessa nota técnica, qual era o documento oficial do governo federal que recomendava as drogas do Kit Covid e colocava em dúvida a eficiência das vacinas? Nenhum, que se tenha conhecimento. Existiam declarações de Bolsonaro. A nota técnica coloca no colo da União a história toda. Agora aqueles que usaram o Kit Covid em seus pacientes podem alegar que seguiam as orientações do governo federal.

A nota técnica do oftalmologista e secretário Neto, da SCTIE/MS, é um atentado ao bom senso e ao rigor científico, como afirma uma nota de protesto assinada por 45 mil profissionais da saúde. Mas é uma peça jurídica importante para os advogados que vão defender os acusados de usarem o Kit Covid em seus clientes. Aliás, o foco da cobertura jornalística sobre essa nota foi na questão técnica. Mas foi deixada de lado uma questão nas entrelinhas dessa história à qual devemos prestar atenção. Que questão é essa? As pessoas que gravitam ao redor de Bolsonaro e que por interesse econômico e político embarcaram nos absurdos defendidos pelo presidente, como o negacionismo em relação ao poder de contágio e letalidade da Covid, estão preocupadas com o que vai acontecer com elas nos dias seguintes ao término do mandato de Bolsonaro. E estão juntando provas para se defender de futuras acusações nos tribunais dizendo que só cumpriam ordens. Chegou a hora dos repórteres começarem a conversar com os advogados das redações sobre esse ângulo das notas técnicas, em especial na área do Ministério da Saúde. Lembro o seguinte aos meus colegas, especialmente aos mais jovens que estão na correria da cobertura do dia a dia nas redações. Pouco ou nada sabemos do que acontece entre as quatro paredes do governo federal. O que sabemos é que há uma grande lambança devido à incompetência de gestores colocados em áreas cujo funcionamento desconhecem. Mas têm muito mais coisas.

Arrematando a nossa conversa. Como já fiz em outras vezes, não estou discutindo se Bolsonaro vai se reeleger ou não. Estou dizendo que um dia o mandato dele vai chegar ao fim. E que, preocupadas com isso, pessoas que gravitam ao redor do presidente estão procurando se assegurar juridicamente que vão poder alegar que só estavam cumprindo ordens quando forem acusadas pelas atrocidades cometidas pelo governo, principalmente na saúde pública, como demonstrou o relatório da CPI da Covid. A mesma recomendação vale para a área do Ministério do Meio Ambiente. O ex-ministro Ricardo Salles deixou um monte de questões em aberto, principalmente relacionadas ao contrabando de madeiras nobres da Amazônia para os Estados Unidos e Europa, e a invasão de garimpeiros nas áreas indígenas. Toda essa gente está tentando apagar as suas digitais nas lambanças que fizeram no exercício dos seus cargos. Não sei o que a Justiça fará a respeito do assunto. Sei que os jornalistas vão ter muito trabalho pela frente.

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