A história está aí para quem quiser consultar. Sempre que os generais saem da caserna e se metem na administração civil do país eles enfiam os pés pelas mãos, como diz o dito popular para descrever um administrador incompetente. Não foi diferente com Eduardo Pazuello, general-de-divisão da ativa do Exército, durante os 10 meses que ocupou o cargo de ministro da Saúde. O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) nomeou Pazuello em maio de 2020 e, em março de 2021, o demitiu porque ele tinha se tornado o símbolo da incompetência na gestão do combate à pandemia causada pela Covid-19. Por que o general se tornou um símbolo da incompetência? Simples. Ele seguiu o manual do Exército, que diz que durante o combate o soldado deve se adaptar ao terreno onde a luta é travada, para surpreender o inimigo. Pazuello seguiu o manual. E, aí sim de uma maneira muito competente, tornou em política de governo o negacionismo de Bolsonaro em relação ao poder de contágio e letalidade da Covid-19. Isso o manteve no cargo enquanto o vírus colocava o mundo de joelhos, causando mais de 3 milhões de mortes, sendo 436 mil no Brasil (até 21/5), e espalhando prejuízos econômicos que necessitarão de alguns anos para serem recuperados.
Bolsonaro não pensou duas vezes na hora de demitir Pazuello. Por quê? O presidente foi tenente do Exército e saiu da corporação depois de ter se envolvido em atos de indisciplina – há material na internet. Foi para a reserva das Forças Armadas como capitão. E há mais de 30 anos é parlamentar – foi vereador e deputado federal do Rio de Janeiro. Portanto, o manual de sobrevivência do presidente foi ele mesmo que escreveu ao logo da sua vida civil. E há um item muito importante nesse manual: “tenha sempre alguém por perto para jogar a culpa”. Esse é um dos motivos pelos quais Bolsonaro colocou na sua administração 6 mil militares de várias patentes, entre eles generais. Sempre que há um rolo grande, ele demite um general – há matérias na internet. Pazuello foi usado como boi de piranha. E mentiu durante o seu depoimento na Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado, a CPI da Covid-19, em nome de uma “camaradagem da caserna” com Bolsonaro na qual só ele acredita. Resultado: vai responder perante a lei por vários crimes. Enquanto isso, o presidente segue sua campanha pela reeleição em 2022.
É fundamental para Bolsonaro na disputa eleitoral de 2022 manter e alimentar o mito na população de que ele é as Forças Armadas no poder. Não é por outro motivo que, enquanto sacrifica Pazuello, ele brinda outros generais da sua administração com um “decreto fura teto”, permitindo que acumulem os seus vencimentos com os salários que recebem pelos cargos que ocupam no governo. Tenho defendido nos meus textos que os militares na administração federal não estão ali por ideologia. Mas para reforçar os seus salários. E o “decreto fura teto” é uma amostra disso. Mais ainda: o decreto mostra que o episódio de Pazuello fez “cair a ficha” dos generais de que podem ser o próximo “boi de piranha”. E resolveram aumentar o preço dos seus serviços. Eu assisti ao depoimento de Pazuello na CPI da Covid, na quarta e quinta-feira (18 e 19/05). Sou um velho repórter, 70 anos, e boa parte dos meus 40 anos de profissão foram vividos pelas estradas, em busca de histórias para contar. Em uma ocasião dessas não tem com não comparar o que estamos vendo com episódios pelos quais transitamos pela vida afora. Lembro-me que, nos anos de estudante, nas décadas de 60 e 70, eu era uma das vozes que gritavam desaforos para os generais durante as manifestações populares em Porto Alegre contra a Ditadura Militar (1964 a 1985). Nós os chamávamos de “gorilas, torturadores, capacho dos americanos” e outros desaforos. Não lembro de chamá-los de mentirosos porque seria uma redundância. Todos sabiam que eles mentiam quando diziam que não existia tortura no Brasil (documentos e testemunhas mostram que existia), que a economia estava a todo vapor (estavam endividando o país, o que resultou na hiperinflação) e que não existia corrupção (a imprensa era censurada). Em 1985, houve a redemocratização do país e com ela as Forças Armadas se profissionalizaram e recuperam a sua imagem perante a população civil. Claro, restou um contingente, que nas redações dos jornais chamávamos de “entulhos autoritários” – saudosistas da Guerra Fria e da Ditadura Militar.
Assistindo ao depoimento do Pazuello lembrei-me que durante o regime militar os generais usavam os meios de comunicação, especialmente as TVs, para dar a sua versão dos acontecimentos. Claro que sem serem questionados. Fardados, eles mentiam descaradamente. Não tem como não comparar. Em trajes civis, Pazuello tentou usar os seus ensinamentos de caserna para controlar os senadores. Claro, não conseguiu. Foi encurralado em um canto e bombardeado com perguntas. Faria diferença se o general estivesse fardado? A democracia brasileira é jovem. Mas está consolidada. Isso significa que se o general tivesse cometido no exercício da sua função um crime, ele estaria sentado na frente de um Tribunal Militar. Ele está respondendo pelo que fez exercendo a função civil de ministro da Saúde. Portanto, se for indiciado pela CPI da Covid vai sentar no banco dos réus da Justiça Federal. A história de que um general não mente é mais um mito da Ditadura Militar. Os generais mentem, sim. Aliás, a mentira é usada no campo de batalha para iludir o inimigo, como técnica de combate da guerra psicológica e de camuflagem. Em tempos de paz e em um país democrático, o uso da mentira como arma pode dar cadeia.