Perca ou ganhe as eleições argentinas, Milei vai complicar a vida do governo brasileiro

Por ser a principal cliente da indústria nacional, as compras argentinas geram muitos empregos no Brasil Foto: Reprodução

Caso perca ou ganhe as eleições presidenciais na Argentina no próximo dia 19, o certo é que o governo brasileiro terá problemas com Javier Milei, o candidato da extrema direita que disputa o segundo turno com o atual ministro da Economia, Sergio Massa. Se perder, Milei vai bater na tecla de que as eleições foram fraudadas e que o governo do Brasil faz parte de uma conspiração internacional contra a sua candidatura. O que significa que existe a real possibilidade dos seus seguidores repetirem o que aconteceu em Brasília (DF) em 8 de janeiro, quando os partidários do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) tentaram derrubar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) invadindo e quebrando tudo que encontram pela frente no Palácio do Planalto, no Congresso e no Supremo Tribunal Federal (STF). Por sua vez, os brasileiros seguiram o exemplo dos discípulos do então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump (republicano), que no dia 6 de janeiro de 2021 invadiram o Capitólio (o prédio do Congresso americano) para tentar impedir que o Colégio Eleitoral homologasse a vitória do democrata Joe Biden, que venceu nas urnas as eleições presidenciais de novembro de 2020. Caso Milei ganhe as eleições, no dia seguinte ao início do seu mandato na Casa Rosada (sede do governo) ele começará a articular a destruição do Mercosul, o bloco econômico que regulamenta o comércio dos países da região, tentará fechar o Banco Central e “dolarizará” a economia argentina. Estas e outras medidas que pregou durante a campanha vão tumultuar a economia da América do Sul e o maior prejudicado será o Brasil.

Vamos aos fatos. Cinco candidatos concorreram no primeiro turno: Massa ficou em primeiro lugar, com 36,68% dos votos, e Milei em segundo, com 29,98%. A duas semanas do segundo turno, os candidatos estão cabeça a cabeça, como os gaúchos do interior do Estado descrevem uma disputa acirrada. Não vou torrar a paciência dos meus colegas e muito menos tomar o tempo dos leitores falando sobre as campanhas dos dois candidatos. Faço isso por entender que seja um assunto para os analistas políticos e os repórteres que fazem a cobertura do dia a dia nas redações. Vou falar sobre a novidade dessa eleição, que é o candidato Milei, e o que poderá acontecer nos dias seguintes aos resultados das urnas. Farei um relato de um velho repórter estradeiro, 73 anos, que mais da metade da vida corre atrás de histórias. Pelos rincões por onde andei, vi coisas que até Deus duvida que existam. O que escrevi até agora e vou relatar nas linhas seguintes não é uma tese e muito menos adivinhação de bola de cristal. Estou enfileirando fatos que vi, li e ouvi no acompanhamento que tenho feito das eleições argentinas em artigos na imprensa do Brasil, da Argentina e dos Estados Unidos. E de fontes com quem tenho conversado. Conheço razoavelmente a política argentina. Nas minhas andanças de repórter trabalhei nos casos dos atentados terroristas à embaixada de Israel (1992) e à Associação Mutual Israelita Argentina (1994), ambas em Buenos Aires, que somaram 114 mortos e centenas de feridos. E, desde 1983, perambulo pela fronteira do Brasil com a Argentina fazendo reportagens sobre crime organizado e sobre os agricultores gaúchos e seus descendentes que vivem no interior daquele país. Dito isso, lembro aos meus colegas que existe no mundo uma rearticulação da extrema direita da qual fazem parte Trump e Bolsonaro. Milei pegou carona nesse bonde. Há uma divisão entre os jornalistas a respeito desse assunto, se ele é um extrema direita de carteirinha ou um oportunista surfando na onda. Conversei sobre o assunto com Jair Krischke, do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), de Porto Alegre (RS). Ele me disse o seguinte: “Milei é perigoso. Mas é preciso olhar quem está ao seu redor. Vejo uma pessoa muito mais perigosa e articulada com a extrema direita, que é sua vice, a advogada Victoria Villarruel. Ela tem ligações familiares e profissionais com os militares que deram o golpe em 1976, em especial com os carapintadas, um grupo ligado ao coronel Mohamed Ali Seineldín”.

A história que Krischke contou do coronel Seineldín (1933-2009) é longa e cheia de detalhes. Vou resumi-la. Em 1982, o então presidente da Argentina, general Leopoldo Galtieri, que entrou para a história como um ditador sanguinário, num conflito militar que ficou conhecido como Guerra das Malvinas, tentou ganhar na mão grande as Ilhas Malvinas, um arquipélago remoto do Atlântico Sul cuja posse a Argentina disputa com o Reino Unido desde 1833. As Forças Armadas argentinas, mal equipadas, com um contingente formado por recrutas, foi derrotada e humilhada por uma força-tarefa britânica. A derrota precipitou a queda da ditadura militar. No meio da humilhação dos militares argentinos surge a figura do coronel Seineldín, que se tornara um herói entre os soldados derrotados nas Malvinas por ter enfrentado os ingleses de igual para igual. Nessa condição, Seineldín participou de duas rebeliões militares que tentaram derrubar os presidentes eleitos Raúl Alfonsín, em 1988, e Carlos Menen, em 1990, num movimento que ficou conhecido como Carapintadas, porque seus integrantes pintavam o rosto de preto. Até os dias de hoje, mais de uma década depois da morte do coronel, os carapintadas o veneram – a história toda está disponível na internet.

O fato é o seguinte: a extrema direita nos países do Cone Sul está renascendo das cinzas dos regimes militares que governaram a região entre meados e o final do século passado. Krischke conhece profundamente as entranhas das ditaduras militares do Brasil (1964 a 1985), do Uruguai (1973 a 1985) e da Argentina (1976 a 1983). Além de ter sido testemunha dessa história, anualmente ainda viaja pela região acompanhando os acontecimentos políticos. Recomendo aos colegas uma conversa com ele para entender os bastidores do atual quadro político do Cone Sul. Faço essa recomendação especialmente aos jovens envolvidos com a cobertura diária nas redações. Ajudará a entender a dimensão de alguns absurdos que ícones da nova extrema direita vem falando. Villarruel, por exemplo, tem dito que a ditadura argentina não fez desaparecer 30 mil pessoas. Há documentos, testemunhas como o papa Francisco e centenas de reportagens nos jornais que mostram a crueldade que foi a repressão argentina. No Brasil, o ex-presidente Bolsonaro não perde uma oportunidade de elogiar o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015) como um “herói nacional”. Ustra é um torturador de presos políticos com uma longa ficha de violação dos direitos humanos. Para fechar a nossa conversa. Uma das marcas do perfil dos argentinos nas suas lutas políticas é a passionalidade – existem documentos, reportagens e publicações sobre o assunto na internet. Se os líderes da extrema direita tiveram sucesso na manipulação desse sentimento, vai dar um grande rolo no dia seguinte ao anúncio do vencedor das eleições presidenciais. Podem anotar.

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