Pelo seu conteúdo inédito na história recente do Brasil, o caso da operadora de saúde Prevent Senior precisa ser melhor contextualizado para o nosso leitor. A direção da empresa paulista, que é um conglomerado de hospitais, laboratórios e consultórios com 500 mil clientes com idades acima de 65 anos e 10 mil empregados, é investigada pela Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19 do Senado, a CPI da Covid, por ter usado seus clientes para testar o chamado Kit Covid sem autorização das famílias, pressionar médicos a receitá-lo aos pacientes e outras ilegalidades. Os testes feitos pela Prevent Senior tinham como objetivo respaldar a política de tratamento preventivo do vírus do presidente da República Jair Bolsonaro (sem partido) com o uso do Kit Covid, que é composto pelos medicamentos Ivermectina, hidroxicloroquina, azitromicina e vitamina D3 + zinco. Nenhum desses remédios têm efeito contra a Covid. E seus efeitos colaterais são perigosos para os pacientes.
Na quarta ou quinta-feira dessa semana deverá depor na CPI da Covid a advogada Bruna Moreto, que auxiliou um grupo de médicos a fazer um dossiê denunciando os testes ilegais nos pacientes e as pressões que sofreram para receitarem a cloroquina e outras drogas ineficazes contra o vírus. Na semana passada, quarta-feira (22/09), o diretor-executivo Pedro Benedito Batista Júnior prestou um longo e tumultuado depoimento na CPI. Por tudo que já publicamos sobre o assunto, o rolo é muito grande e dificilmente se esgotará com o término da CPI. É sobre isso que vamos conversar. A participação de empresas financiando atividades ilegais de governos não é novidade no Brasil, muito menos no mundo. Na história recente do país, há livros, documentos e depoimentos de presos políticos denunciando a participação de empresários no financiamento de prisões ilegais e torturas durante a ditadura militar que durou de 1964 a 1985. Mais de 80 empresas se envolveram com o financiamento e espionagem de funcionários para os militares golpistas de 64. O levantamento foi feito pela Comissão Nacional da Verdade. Durante a Segunda Guerra Mundial (1938 a 1945), marcas como BMW, Fiat, Bayer, Volkswagen, Siemens, IBM e vários bancos se envolveram com o financiamento do líder nazista Adolf Hitler, na Alemanha, e com o fascista Benito Mussolini, na Itália. Toda a história está documentada no Tribunal de Nuremberg, o julgamento dos criminosos de guerra feito pelos Aliados. Foi possível reescrever a história da atuação dos empresários e empresas durante o período militar no Brasil porque, apesar de na época existir a censura prévia nos grandes jornais e noticiários de rádio e TV, foi estruturada no país uma “imprensa alternativa” que era formada de pequenos jornais, revistas e outras formas de comunicação, e que contavam os fatos.
Tudo que narrei para vocês até aqui está disponível com o apertar de um botão no teclado do computador. Agora vamos avançar na nossa conversa. O caso da Senior ainda tem muita coisa solta que precisa ser melhor analisada para permitir que, no futuro, o pesquisador leia o que escrevemos e consiga ter um quadro da situação toda. Em primeiro lugar, duvido que alguém do governo Bolsonaro tenha forçado a direção da Senior a se envolver com os testes com o Kit Covid. E muito menos que a empresa tenha entrado nessa história por identificação ideológica com o bolsonarismo. Entrou porque viu uma oportunidade de fazer bons negócios e ganhar dinheiro. Conversei sobre o caso da Senior com um grande empresário do setor de serviços, uma pessoa com quem troco ideias há um bom tempo. Ele me disse que esse episódio das cobaias pode ser a ponta do iceberg de uma situação bem maior. A avaliação dele é de que, como a empresa opera com um cliente idoso, que é justamente o que dá mais despesas para as operadoras de saúde, cada centavo que poupar no tratamento é dinheiro. Argumentei que o risco é muito grande, porque a informação de que essas drogas do Kit Covid são ineficazes já circula há muito tempo. A resposta que recebi é que o simples fato de estar envolvida com presidente da República rendeu à operadora uma visibilidade pública que foi transformada em novos clientes. Ele arrematou a nossa conversa falando o seguinte: “O garoto-propaganda da empresa não foi ninguém mais, ninguém menos, que o presidente da República do Brasil”.
Acredito que o caso da Senior vai ser assunto na imprensa por longo tempo devido o seu perfil. O depoimento da advogada Bruna Moreto ajudará os jornalistas a abrirem novas picadas na investigação desse caso. É preciso esclarecer para o leitor como transitou dentro da direção da empresa a discussão sobre o uso dos clientes como cobaias. Na direção há médicos que sabem exatamente o significado técnico, ético e legal de se envolverem em uma empreitada desse tipo. E se por algum motivo desconhecido eles acreditaram por um momento que pelo fato de estarem envolvidos com o presidente da República estariam protegidos para cometerem ilegalidades, eles não sabem em que país estão vivendo. O Brasil tem uma democracia jovem, mas com músculos suficientes, como tem demonstrado, para garantir os direitos fundamentais do cidadão, como uma imprensa livre de censura. Como já disse. Nós repórteres ainda precisamos esclarecer muita coisa no caso Senior. Mas estamos trabalhando nisso. A ferramenta principal para fazer esse trabalho nós temos: liberdade de imprensa. Portanto, vamos nos envolver nessa história para conhecer os cantos escuros. E lá que sempre encontramos as explicações.