Por que, na greve dos caminhoneiros, não foi debatido o uso do rebite?

A maioria dos caminhoneiros da carga horária usa o rebite para conseguir dirigir por longos períodos . Foto: PRF/Divulgação

Um assunto que ficou de fora das discussões durante a greve dos caminhoneiros: a carga horária – tem dia e hora marcada para chegar ao seu destino. Ela representa uma fatia importante do faturamento das empresas de transporte e é a principal fonte de renda do caminhoneiro autônomo. E por que ela não foi discutida? Por que a maioria dos motoristas envolvidos com a carga horária só consegue cumprir a sua jornada de trabalho usando rebite – um comprimido que contém anfetamina, um poderoso estimulante que foi usado pelos pilotos suicidas japoneses, os camicases, na IIª Guerra Mundial. O seu uso continuado, nos primeiros cinco anos, causa transtornos mentais e decadência física, e, antes de completar uma década, um ataque cardíaco fulminante.

A história dessas mortes prematuras é contada pelas lápides nos cemitérios, nas cidades onde a maioria da população é de caminhoneiros, tipo Três Cachoeiras, à beira da BR-101, no Litoral Norte gaúcho. Assim como as charqueadas no Rio Grande do Sul, os canaviais dos estados do Nordeste e os cafezais de São Paulo passaram para a história do Brasil como símbolos do trabalho escravo. A carga horária é hoje sinônimo de escravidão para os caminhoneiros, que cruzam esse país de ponta a ponta e de lado a lado, dirigindo até 48 horas seguidas graças ao  rebite. Falar sobre o uso de rebite é um tabu para os empresários do setor e os caminhoneiros autônomos. Mas ele existe e sustenta a carga horária.

Para facilitar o entendimento do nosso leitor, vamos contar uma pequena história da carga horária. Ela sempre existiu. Mas tornou-se um importante esteio do modo de vida dos brasileiros nas últimas três décadas. E, grosso modo, ela se divide em dois ramos: produtos industriais e hortifrutigranjeiros. Na questão dos produtos indústrias. O comércio varejista, com a estabilização da inflação, nos anos 90, diminuiu sensivelmente os seus estoques. Tanto que hoje se compra um equipamento que sequer ele foi fabricado. Mas é entregue ao consumidor no dia e horário marcados, graças à carga horária. Hoje, o estoque das lojas é a carroceria dos caminhões.

A carga horária de hortifrutigranjeiros é um capitulo à parte. O trabalho desse caminhoneiro é o que mais se aproxima ao dos escravos. Fui testemunha disso. Em 2008, eu percorri uns 10 mil quilômetros com um deles, registrando o seu cotidiano. O caminhão usado nesse tipo de transporte é o truck – aquele que tem dois eixos na traseira –, por ser um veículo rápido, que pode transportar até 20 mil quilos. Na ocasião, fiz um acordo com o dono do truck e com o motorista de não revelar nomes e qualquer detalhe que ajudasse a identificá-los. Mantenho a minha palavra. Partimos no fim de semana, um chuvoso, com uma carga de arroz para o comércio varejista do sertão da Bahia. Ao final das primeiras cinco horas de viagem, em um posto de combustíveis, o motorista pediu que eu ficasse na cabine e saiu do veículo. Notei que ele tinha ido tomar o rebite. Na ocasião, eu tinha 58 anos, e ele não mais que 30. Logo que reiniciamos a viagem, disse para ele. “Tu sabe que o diabo é sabido, não porque é o diabo. Mas porque é velho como eu, né? Ele riu. Daí comecei a explicar como era importante eu saber como tudo funcionava. Acrescentei que tal conhecimento era importante porque iria me ajudar a não escrever bobagem. Dali para a frente, a conversa começou a fluir entre nós. Ele me perguntou se eu sabia o motivo pelo qual os caminhões de carga rápida raramente ostentam o logotipo de empresa. Respondi que não tinha ideia. Ele respondeu que era porque se envolviam em acidentes.

À noite, nos postos de combustíveis, ficava de ouvinte das conversas entre os caminhoneiros de carga horária. Os colegas do meu amigo não sabiam que eu era jornalista. Adotei essa estratégia de trabalho para facilitar o meu acesso à realidade deles. Pela minha experiência, se eles soubessem quem eu era, a conversa não iria fluir com naturalidade. O que ouvi deles foram relatos sobre mortes, doenças, alucinações e coisas dignas de ficção, do tipo: a hora da morte. Eles falam que essa hora chega no final das viagens, quando o motorista acredita que não precisa tomar mais um rebite porque está perto do seu destino. Sem o efeito da droga, o sono chega, eles apagam e batem o caminhão.

Até o sertão da Bahia, foi uma viagem normal. Lá deixamos o arroz no comércio varejista e carregamos uma carga de tijolos e telhas para o litoral baiano. Naquelas alturas da viagem, já sabia como as coisas aconteciam. Em um dos postos, fiz um arroz de china pobre (arroz com linguiça) para um grupo de caminhoneiros. Descarregamos as telhas e os tijolos e rumamos para a divisa da Bahia com o Espírito Santo. Lá carregamos uma carga de mamão para Porto Alegre. O tempo normal de viagem seria quatro dias. Nós tínhamos dois e meio para chegar.  Aí o bicho pegou. Ele dirigiu direto dois dias e duas noites, tomando um rebite a cada quatro horas. No final, ele não conseguia mais articular as palavras. As vezes em que paramos para abastecer, eu via os outros motoristas usando um pilãozinho  para desmanchar o comprimido de rebite. Claro, nós chegamos a Porto Alegre no dia e no horário combinados. Todo o relato do que vi foi publicado em uma reportagem chamada “Camicases do Asfalto”.

O caminhoneiro que transporta hortifrutigranjeiros é conhecido como “verdureiro”. Aliás, eles se organizam pelo tipo de carga que transportam, por exemplo: vi um caminhão escrito “máfia do pó”.  Na ocasião, perguntei ao meu amigo se era cocaína. Ele riu e disse que eram chamados assim os que transportavam farinha de trigo. Vez ou outra, eu ligo para alguns deles para dar um olá. A vida para eles segue como sempre foi: curta e perigosa. Como repórter, considero importante mostrar ao nosso leitor esse lado cruel da vida dos motoristas das cargas horárias, principalmente a dos verdureiros.

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