O Rio de Janeiro não é para amadores. O ex-juiz federal Wilson Witzel, 52 anos, acaba de aprender isso da pior forma ao ingressar na lista dos governadores e ex-governadores afastados ou presos no cargo nos últimos quatro anos. Um deles, Sérgio Cabral Filho foi condenado a 300 anos de prisão. O que nós repórteres teremos que explicar aos nossos leitores é se o afastamento ou prisão dos governadores significa que a Justiça está funcionando no Rio ou, usando a linguagem dos repórteres que cobrem os assuntos policiais, estamos diante de uma disputa entre quadrilheiros que delatam seus ex-comparsas para assumirem o lugar deles. Não é uma matéria fácil de fechar. Mas temos alguns caminhos relativamente seguros que podemos percorrer para facilitar a vida do leitor.
Antes de seguir com a história. Sou um velho repórter estradeiro que focou sua carreira na cobertura de conflitos agrários, crime organizado e migrações. Aprendi que não se deve jogar as coisas na cara do leitor. Temos que explicar a raiz dos acontecimentos e para isso não precisamos anexar à matéria uma tese de doutorado. Uma frase pode ser suficiente para contextualizar uma notícia. Voltando à história. Há trabalhos acadêmicos, livros e documentos que mostram que o crime organizado no Brasil nasceu no Rio de Janeiro. Foram os bicheiros que montaram uma máquina de corromper policiais, políticos e autoridades. O maior deles foi Castor de Andrade (1926 a 1997) – sua história está na internet. O auge do poder dos bicheiros foi no início dos anos 90. Mas a disputa entre eles acabou enfraquecendo o seu poder e abriu brecha para o crescimento dos traficantes. Foi quando surgiu o Comando Vermelho (CV), ligado a Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar – preso cumprindo uma pena de 125 anos.
Os traficantes cariocas não conseguiram se infiltrar na administração do Rio de Janeiro com a mesma profundidade dos bicheiros. Mas fizeram uma sólida conexão com as forças policiais. Na Polícia Militar nasceram as milícias, que se aproveitaram da luta armada entre os traficantes pelo controle dos pontos de venda de drogas e os expulsaram, tomando o seu lugar. Há centenas de milícias no Rio, e hoje elas são o inimigo público número um do Brasil. Por quê? Estão infiltradas nas forças policiais, portanto têm acesso a informações privilegiadas de tudo o que acontece na área da segurança pública. Um miliciano que recentemente foi notícia ao redor do mundo foi o ex-capitão Adriano da Nóbrega, que dirigia o Escritório do Crime, um grupo de pistoleiros que matava sob encomenda. Nóbrega foi morto em fevereiro, em um confronto com a polícia no interior da Bahia. Ele tinha ligações com o policial militar da reserva Fabrício Queiroz, que foi chefe de gabinete do então deputado do Rio de Janeiro e hoje senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido) – publicamos dezenas de matérias que estão disponíveis na internet.
Aqui é o seguinte. Ao contrário dos bicheiros, que só exploravam os jogos ilegais, e dos traficantes, que se concentravam na venda de drogas, os milicianos inovaram: eles operam com transporte clandestino, venda ilegal de serviços de TV a cabo, de internet e de gás. E entraram no ramo da construção de prédios irregulares. Foram milicianos que executaram a vereadora carioca Marielle Franco (PSOL) e seu motorista, Anderson Gomes, em março de 2018, porque ela estava denunciando essa situação. O crime repercutiu ao redor do mundo. Hoje milicianos, bicheiros e traficantes tornaram-se braços do Estado no Rio de Janeiro. Um exemplo é o caso envolvendo a deputada federal pelo Rio Flordelis. Ela é apontada pela Polícia Civil como mandante da morte do marido, o pastor Anderson do Carmo, em maio. A história é um roteiro de filme – está disponível na internet. O casal tinha adotado 55 filhos. As leis brasileiras de adoção se perfilam entre as mais rígidas do mundo. Como então é possível alguém adotar 55 crianças? Inclusive o próprio marido foi um dos adotados pela deputada. Que antes de se tornar seu marido foi namorado de uma filha dela, ou seja, era seu genro. É uma história maluca. Mas não aconteceu no Rio por acaso. Aconteceu porque houve algum problema no processo das adoções. Essas coisas acontecem no Rio de Janeiro porque o Estado foi corroído pelo crime organizado. É simples assim.