História esquecida pela imprensa: os brasileiros dos países vizinhos e a Covid-19

CTG Índio José em Santa Rita, Departamento do Alto Paraná é um marco da presença brasileira nas terras paraguaias. Foto: Reprodução

No Uruguai são chamados de doble chapa, na Argentina de brasitinos, no Paraguai de brasiguaios. E assim por diante são conhecidos os brasileiros que nos últimos 70 anos migraram para 10 países vizinhos. Foram em busca de terras baratas para plantar arroz irrigado e soja e criar gado. E de matas para extrair madeiras nobres e dos garimpos de ouro. Não se tem um número confiável de quantos são. Podemos afirmar com alguma segurança que passam de 1 milhão. Só no Paraguai somam mais de 500 mil. A grande maioria são agricultores do Sul do Brasil que nos anos 1970 povoaram as fronteiras agrícolas do Oeste e se espalharam pelos países vizinhos. 

Como se fala no interior gaúcho: esse pessoal comeu o pão que o diabo amassou. Os que sobreviveram prosperaram e hoje são responsáveis por uma boa parte da produção agrícola desses países. Como conseguiram? Dois fatores foram e ainda são fundamentais: o pacote tecnológico feito para os agricultores pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e o Sistema Único de Saúde (SUS). Como sei? Entre 1983 e 2019, de dois em dois anos andei por esses lugares fazendo reportagens e escrevendo livros, que somam cinco. O foco da nossa conversa é a questão da saúde desses migrantes. A maioria preserva a cidadania brasileira. E usa os serviços do SUS nas cidades da fronteira. Fazem isso por vários motivos, destaco dois: serviços grátis e rede de atendimento especializado ampla e diversificada. E as orientações que eles seguem no caso da Covid-19 são as que ouvem e assistem pelas TVs e rádios do Brasil. 

Não é de hoje. Mas há muito tempo que serviços públicos de saúde das cidades da fronteira gaúcha com o Uruguai dão assistência aos brasileiros e seus familiares que vivem no país vizinho. A fronteira entre os dois países sempre foi ignorada pelos moradores de ambos os lados. A expressão doble chapa nasceu na época que os carros, para circularem nos dois países, precisavam ter duas placas. No final da década de 80, aconteceu uma história interessante nesse canto da América do Sul. O governo do Brasil desapropriou muitas fazendas no interior do Rio do Grande do Sul para assentar colonos sem-terra. Para os dos donos das fazendas foi um bom negócio. Com o dinheiro ganho, eles compraram propriedades no Uruguai duas vezes maiores que aquelas que venderam no Brasil. As cidades gêmeas da região, separadas por uma avenida, como Santana do Livramento, no Rio Grande do Sul, e Rivera, no Uruguai, fizeram acordos para atender casos de Covid-19. 

A fronteira seca, como é caso de Livramento e Rivera, facilita o acesso aos serviços médicos do Brasil. Hoje (26/08) os brasiguaios que vivem no Departamento do Alto Paraná, no Paraguai, estão tendo um grande problema para buscar atendimento em Foz do Iguaçu (PR). Naquele trecho da fronteira os países são divididos pelo Rio Paraná. E as autoridades paraguaias fecharam a Ponte da Amizade que liga Foz a Ciudad del Leste para evitar o alastramento da Covid-19. No Alto Paraná vivem mais de 100 mil brasiguaios. Há cidades lá, como Santa Rita, em que a maioria da população é de agricultores do Sul do Brasil, principalmente gaúchos. Tem até um Centro de Tradições Gaúchas (CTG), o Índio José. Resultado dessa situação: no Paraguai, os serviços de saúde são pagos. Então o que os brasiguaios da região estão fazendo? Estão fazendo uma viagem de 400 quilômetros até a próxima fronteira seca, que fica em Juan Pedro Caballero, separada por uma avenida de Ponta Porã, cidade do oeste do Mato Grosso do Sul. A fronteira lá também está fechada. Mas não há como impedir que as pessoas atravessem uma avenida. Ponta Porã e as cidades vizinhas têm uma estrutura razoável de hospitais e postos de saúde. 

A diferença das comunidades de brasileiros nos países vizinhos para outras espalhadas pelo mundo é que elas estão aqui do lado do território nacional. E como se fosse uma continuação do Brasil. Aliás, esse é um fator que preocupa as autoridades desses países. Ninguém esquece o Acre, que era território boliviano e acabou sendo anexado ao Brasil depois que foi ocupado por seringueiros. O Ministério das Relações Exteriores do Brasil estima que existam vivendo fora do país, de maneira legal e ilegal, em torno de 2,5 milhões de brasileiros. Pelo que conheço aqui na América do Sul é uma estimativa muito conservadora. O número é bem maior. Mais ainda: muitos brasileiros que vivem nos Estados Unidos e na Europa, quando precisam de tratamento médico mais complexo, vêm se tratar no SUS do Brasil. Meus colegas repórteres, a história da Covid-19 é uma boa oportunidade para informar ao nosso leitor sobre a questão dos brasileiros que vivem fora do país e usam os serviços do SUS. É uma história que não pode ser esquecida. Lembrem-se do seguinte: daqui há alguns anos um colega vai contar o que aconteceu nessa pandemia que mantém os brasileiros encarcerados em suas casas há mais de cinco meses. Um fato inédito na história do país. A questão das comunidades de brasileiros vivendo fora do Brasil e que dependem do SUS faz parte do rolo. É simples assim. 

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