Tenho escrito e falado em palestras nas redações de jornais e faculdades de jornalismo que os eleitores do presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), não podem acusá-lo de não ter dito a verdade a seu respeito durante a campanha. Ele falou que odiava gays, não respeitava as mulheres, admirava os torturadores de presos políticos pelo Golpe Militar de 1964 e outra fileira de posições politicamente incorretas, como apoiar a destruição da Floresta Amazônica. Lembro-me que desde o primeiro minuto que começou a exercer o seu cargo, em janeiro de 2019, Bolsonaro abriu a boca e passou a causar conflitos com adversários políticos, aliados e quem mais não concordasse com as suas ideias. Só uma coisa ele não falou, quando era candidato: que faria um desfile de tanques em Brasília para demonstrar força para os parlamentares da Câmara dos Deputados. Na quarta-feira (10/08), ele fez o desfile para pressionar os deputados a votarem favoráveis à Proposta da Emenda à Constituição (PEC) do voto impresso – há dezenas de matérias publicadas na internet.
Não vou conversar sobre a derrota de Bolsonaro na PEC do voto impresso. Vou falar da minha geração de repórteres e os tanques na rua. Tenho 70 anos e quando aconteceu o Golpe Militar de 1964 eu era uma criança lá em Encruzilhada do Sul, pequena cidade na Serra do Sudeste, uma região muito fria no interior do Rio Grande do Sul. Na época que era adolescente e estudante em Porto Alegre, lembro-me que sempre que alguém entrava em um boteco ou em um local de reunião gritando “tanques estão na rua”, era sinal que os militares vinham para o “pau”, auxiliados pelas polícias militares. Existia um temor enorme entre os estudantes e os contrários ao regime pela presença dos blindados. Eles não disparavam tiros. Só a sua presença assustava. Foi essa imagem que armazenei na minha mente daqueles anos terríveis, entre 1964 a 1985, quando o país se redemocratizou. Quando Bolsonaro falou no desfile de tanques em Brasília, foi essa a imagem que veio a minha mente. Lembro-me que no Brasil das décadas de 60 e 70 as Forças Armadas não precisavam dizer muita coisa. A presença das tropas, os tanques e outros equipamentos militares já assustava. Por quê? O país tinha a maioria da sua população vivendo no interior. E uns poucos, como eu, que se arriscavam a vir para as cidades grandes em busca de uma faculdade e de emprego. Os recursos técnicos da época, como telefone, eram escassos. As estradas, a maioria era de chão batido. Com exceção de São Paulo e Minas Gerais, que produziam café para exportação, os outros estados não tinham vendas significativas de produtos agropecuários (grãos e carnes) para os mercados estrangeiros. O interior do Brasil era muito pobre e as grandes cidades tinham poucas oportunidades de emprego.
Nesses últimos 57 anos (1964 a 2021), eu envelheci e testemunhei uma transformação incrível do Brasil. Hoje existe uma classe média rural. A econômica cresceu e se tornou complexa. Regiões que antes eram “terra de ninguém” se transformaram em celeiros do mundo, como o Mato Grosso. As tecnologias modernas de comunicação se popularizaram. A democracia brasileira é jovem, forte e tem lá os seus defeitos. Mas é uma garantia do nosso modo de vida. O que o presidente Bolsonaro e seus generais fizeram colocando os tanques na rua, em Brasília, foi usar como moeda a lembrança do pesadelo que a minha geração tem do Golpe Militar de 1964. Assistindo aos conteúdos dos jovens repórteres que fazem a cobertura do cotidiano nas grandes redes de comunicação, o desfile dos tanques é citado como se estivessem relatando um acidente de trânsito. Já nos comentários dos jornalistas veteranos podem ser notados os traços das lembranças amargas da época em que tanque na rua era um assunto sério e assustador. Se os brasileiros não estivem mergulhados no atoleiro que estão, a atitude de Bolsonaro iria para a história como uma piada de mau gosto. A situação de hoje dos brasileiros: a pandemia causada pela Covid-19 já matou mais de 560 mil pessoas no país. Uma boa parte dos mortos deveu-se ao negacionismo de Bolsonaro em relação ao poder de contágio e letalidade do vírus. Há mais de 20 milhões de desempregados. A economia está um caos. Dentro dessa realidade, um desfile de tanques em Brasília usado como uma demonstração de força contra os parlamentares é coisa de quem acredita que os anos 60 ainda não terminaram.
Bolsonaro começou a campanha da sua reeleição no minuto seguinte em que assumiu o seu mandato, em 2019. Todos nós já escrevemos isso algumas dezenas de vezes. Também é um fato que ele tem usado as lembranças do pesadelo que foram os anos do governo militar (1964 a 1985) como uma moeda para assustar os velhos que lembram do que foi aquilo. Bolsonaro e seus generais não se deram por conta que a maioria da população não viveu 64, principalmente aqueles na faixa dos 20 e poucos anos. Eles precisam de empregos e vacina contra o vírus. Não estão nem aí para os tanques na rua. O presidente Bolsonaro é o primeiro a ocupar o cargo a ser chamado de mentiroso nos jornais das TVs. Isso é muito sério.