Viúva Porcina nunca imaginou que seria morta pelas mãos da Regina Duarte

A Viúva Porcina (Regina Duarte) e os seus dois homens: Sinhozinho Malta (esquerda Lima Duarte) e o Roque Santeiro (direita José Wilker). Foto: Reprodução.

Foi um amigo de boteco que chamou a minha atenção. O trabalho do repórter de esmiuçar as tragédias para saber como elas aconteceram e procurar a verdade no emaranhado das sacanagens acaba nos endurecendo. E nos cegando para coisas do cotidiano das pessoas que são mais valiosas até que a realidade. Tipo os personagens das ficções, principalmente as novelas da televisão. Fiz essa introdução para citar uma frase de um colega do Ensino Médio, que antigamente chamávamos de segundo grau. Ele me disse: “Wagner, tu viste que a Regina Duarte matou a Viúva Porcina?” Referia-se à humilhante passagem da atriz pela Secretaria Especial de Cultural do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Respondi: “Tchê, não entendi. A Viúva Porcina foi uma personagem da novela Roque Santeiro, que ela interpretou em 1985. O que tem a ver com a situação atual?”.

Antes de seguir relatando a conversa com o meu amigo vamos contextualizar a história. Em janeiro, Regina Duarte substituiu o ex-secretário Roberto Alvim, que fora afastado depois de imitar, em um discurso, Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda de Adolf Hitler. Foi demitida em maio, depois de ser fritada pelo Gabinete do Ódio, como são apelidadas as pessoas que fazem parte do círculo íntimo do presidente e que nunca esconderam sua preferência por Alvim. Voltando à conversa com o meu amigo. Lembro que para nossa geração – tenho 69 anos de idade, 40 e poucos de profissão e trinta e tantos de redação de jornal – Roque Santeiro foi uma das raras atrações da Rede Globo que mereceu a atenção da esquerda, da direita e do centro durante os anos da Ditadura Militar (1964 a 1985). Escrita por Dias Gomes (falecido em 1999) e Aguinaldo Silva, 77 anos, dois autores que dispensam apresentação, a novela ganhou a simpatia dos que eram contra o regime muito antes do seu lançamento. Em 1975, ela teve sua exibição proibida devido à interceptação de uma ligação telefônica de Dias Gomes em que ele teria comentado com um amigo que Roque Santeiro era uma maneira de enganar os militares, por ter sido inspirada na sua peça Berço do Herói, que igualmente havia sido proibida pela censura. A novela foi censurada no dia da estreia, quando já haviam sido gravados 30 episódios.

Naquele tempo tudo que os militares proibiam – filmes, peças, livros e jornais – viravam objeto de desejo da maioria da população. Ninguém me falou, eu estava lá e fui testemunha. Foi justamente isso que despertou o maior interesse de todos quando, em 1985, a Globo anunciou o lançamento de Roque Santeiro. A história de Dias Gomes e Aguinaldo Silva é simples, de bom gosto e cheia de insinuações. Transcorre em um lugarejo chamado Asa Branca, que vive ao redor do mito de um jovem que esculpia santos. Daí o nome Roque Santeiro, interpretado por José Wilker (falecido em 2014), que teria sido morto em um combate contra o cangaceiro Navalha. Até que um dia Roque Santeiro volta a Asa Branca vivo. Regina Duarte interpretava a Viúva Porcina, uma mulher bonita, encrenqueira, que nunca tinha sido casada com Roque Santeiro, mas era venerada como sua viúva. Na verdade, ela era amante de Sinhozinho Malta, um coronel interpretado por Lima Duarte, 90 anos. Todo o elenco era formado por bons atores. O ambiente político no Brasil de 1985 era de colapso do Regime Militar e o alvorecer da redemocratização. Os personagens da novela que habitavam Asa Branca reproduziam esse Brasil. E a Viúva Porcina era a síntese de tudo.

Na memória da minha geração, Regina Duarte era a Viúva Porcina. Eu, e tantos outros repórteres, nunca nos preocupamos em perguntar se Regina Duarte era de esquerda, de direita, de centro ou de qualquer outra tendência política. Na nossa imaginação ela era a “encrenqueira”. Em 2002, a atriz atirou a primeira pedra na imagem da sua personagem. Na ocasião ela afirmou sentir medo de que o PT ganhasse a eleição presidencial. Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e José Serra (PSDB) disputavam então o segundo turno da campanha daquele ano. Lula ganhou e Regina Duarte foi esquecida. Mas a Viúva Porcina não, porque a minha geração de repórteres continuava pelas redações, muitos já ocupando postos de executivos. Regina Duarte reapareceu na campanha política de Bolsonaro e virou manchete dos jornais quando aceitou a Secretaria Especial de Cultura.

Aqui quero chamar a atenção dos meus colegas jovens repórteres. Ao contrário dos nossos colegas americanos e europeus, principalmente os ingleses, nós não temos a tradição de separar os atores dos seus personagens mais populares. Na visão da minha geração, quem assumiu a Secretaria da Cultura foi a Viúva Porcina, uma mulher que jamais aceitaria o desaforo feito pelo presidente Bolsonaro. Regina Duarte aceitou o desaforo e deu um tiro mortal na Viúva Porcina. Por uma dessas sacanagens que a história costuma aprontar. A novela Roque Santeiro entrou no ar no dia 24 de junho de 1985. Ano em que foi inaugurada a redemocratização do Brasil. O próximo dia 24 de junho é uma boa data para a morte da Viúva Porcina.

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