Dia da Consciência Negra e o massacre esquecido dos lanceiros negros farroupilhas

O resgate da história dos lanceiros negros é uma pauta que não pode ser esquecida. Foto: Reprodução

O 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, tem sido sempre uma boa oportunidade para nós, jornalistas, contribuirmos para o fim do racismo estrutural no Brasil. Vou citar dois fatos que considero importantes a nossos leitores. O primeiro é lançar luzes sobre episódios que foram varridos para debaixo do tapete. Na história do Rio Grande do Sul, não é preciso cavar muito fundo para encontrá-los. Um deles é o Massacre de Porongos, que foi empurrado para um canto da história sobre a Revolução Farroupilha, ou a Guerra dos Farrapos, travada de 1835 a 1845 entre gaúchos e o Império do Brasil. Na época, fazia parte das tropas farroupilhas um contingente de escravos, os chamados Lanceiros Negros. Lutavam sob a promessa de serem libertados ao final do conflito. Em 1844, os farrapos e os imperiais alinhavavam o fim das hostilidades, a qual ocorreu no ano seguinte, em 1º de março, com a assinatura do Tratado de Poncho Verde. Durante as negociações, os imperiais exigiram a quebra da promessa dos líderes farrapos de libertarem os soldados negros. Por conta disso, o general farrapo David Canabarro traiu os lanceiros negros, que foram emboscados e mortos por tropas imperiais em uma região próxima à fronteira com o Uruguai, chamada Porongos, em 14 de novembro de 1844.

O que escrevi é o resumo de uma das versões sobre a morte dos lanceiros negros. Entre os intelectuais gaúchos, há intenso debate sobre o que realmente ocorreu. Cito alguns dos livros que tratam do assunto. História regional da infâmia – O destino dos negros farrapos e outras iniquidades brasileiras (ou como se produzem os imaginários), de Juremir Machado da Silva. Negros na Revolução Farroupilha – Traição em Porongos e farsa em Ponche Verde, de Moacyr Flores. E Lanceiros Negros, de Geraldo Hasse e Guilherme Kolling. Além dessas obras, existem dezenas de artigos, teses de dourado e outras publicações.

No Dia da Consciência Negra, vasculhei jornais nacionais e gaúchos em busca de matérias sobre os lanceiros negros. Também fiquei atento aos noticiários das TVs e emissoras de rádio. Se divulgaram algo, devo ter passado batido, porque nada encontrei. Convido meus colegas, em especial os mais jovens que já estão na correria das Redações, a fazerem uma reflexão sobre a chance que temos de aproveitar a data para remexer a história de episódios como o Massacre de Porongos. Como já citei, existe uma enormidade de livros e pesquisas sobre o assunto. Todo esse material nos fornece informações para uma ampla investigação, incluindo as fontes disponíveis e as discordâncias entre historiadores. Por quê? Por serem exatamente as discordâncias que despertam a atenção do leitor na tentativa de se buscar a verdade.

Agora vamos ao segundo fato, o qual anunciei no começo deste texto. Em 19 de novembro de 2020, véspera do Dia da Consciência Negra, João Alberto Silveira, 40 anos, o Beto, um homem negro, foi espancado e morto por dois seguranças brancos a serviço da filial do supermercado Carrefour, na zona norte de Porto Alegre. Acompanhei o caso e, em 23 de novembro de 2020, fiz o post “Morte de homem negro tem a marca da precarização dos serviços de vigilância”. O inquérito policial indiciou, por homicídio qualificado, o PM Giovani Gaspar da Silva, 24 anos, soldado temporário da Brigada Militar (BM) que fazia um bico no supermercado, e Magno Braz Borges, 30 anos, segurança da empresa Vectro, com sede em São Paulo, contratada pelo Carrefour.

O que aconteceu com os negros no Brasil nesses 176 anos que separam o Massacre de Porongos da morte de Silveira no Carrefour? A maioria da população negra é pobre e vive em favelas. E são a maioria da população carcerária. Uma das causas dessa situação é que, quando a princesa Isabel aboliu a escravidão, em 13 de maio de 1888, milhares de negros foram simplesmente jogados na rua sem direito a nenhum centavo pelos anos de trabalho forçado. Foi por essa razão que, em 2003, os movimentos negros instituíram o 20 de novembro como o Dia da Consciência Negra, em homenagem à morte de Zumbi dos Palmares, líder do maior quilombo do Brasil na Serra da Barriga, na então Capitania de Pernambuco. A luta pelo Dia da Consciência Negra começou em 1971 com um grupo de jovens em Porto Alegre, que se reunia para questionar a legitimidade do 13 de maio como data da libertação dos escravos.

Foi graças a essa articulação política dos movimentos negros que a morte de Silveira  tornou-se notícia internacional. Meses antes, em maio, George Floyd, negro, foi morto por asfixia ao ter o pescoço pressionado pelo joelho do policial branco Dereck Chauvin, em Minneapolis, Minnesota, Estados Unidos. Em 2013, nasceu nos Estados Unidos o Black Live Matters (Vidas Negras Importam), um movimento que se articulou ao redor do mundo com protestos e cobranças por justiça. Graças a essas mobilizações, nos dias atuais ficou mais difícil varrer para debaixo do tapete episódios como o Massacre de Porongos e tantos outros envolvendo vítimas negras por esses rincões do Brasil. Mas ainda tem gente que tenta. Daí a necessidade de ficarmos atentos. Na lida da reportagem aprendi que o repórter precisa estar sempre atento às oportunidades que surgem para remexer as histórias mal contadas que circulam por aí. O Dia da Consciência Negra é uma dessas datas que nos incentivam a remexer o passado em busca de injustiças escondidas no presente, testemunhando a brutal luta pela sobrevivência da população negra. 

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