No Brasil, usar o Exército para conter manifestações como as chilenas é apagar fogo com gasolina

As tropas do Exército do Chile patrulhando as ruas de Santiago. Imagine o que acontece se um os manifestantes encurralam um soldado portando uma arma automática ? Fotos: EBC

Na sua visita ao Japão, o presidente da República Jair Bolsonaro (PSL-RJ) afirmou e virou notícia nos grandes jornais brasileiros que as Forças Armadas estão preparadas para enfrentar manifestações como as que estão ocorrendo em Santiago e em outras cidades chilenas. Há duas semanas o Exército do Chile e a população vêm se enfrentando nas ruas com um saldo de pelo menos 18 mortos, dezenas de feridos, saques ao comércio e incêndios. Na ocasião, Bolsonaro disse também que as manifestações são movimentos da esquerda tentando voltar ao poder na América do Sul. A exemplo do que aconteceu no Brasil, em julho de 2013, quando um protesto que começou em Porto Alegre contra o aumento de 20 centavos na passagem de ônibus se alastrou para outras 438 cidades do país, no Chile a manifestação se iniciou contra o acréscimo de 3,75% no preço da passagem do metrô de Santiago e acabou se transformando em um movimento bem maior.

Nos dois casos há uma fileira de motivos que explicam o protesto de 2013 no Brasil e o que acontece agora no Chile – há dezenas de artigos e entrevistas com economistas, historiadores, sociólogos e políticos disponíveis na internet. Vamos nos concentrar no nosso trabalho de repórter, que é estar no meio da manifestação, fazendo a cobertura. E, sob esse ponto de vista, analisar o que Bolsonaro falou sobre as “Forças Armadas estarem preparadas”, caso ocorram aqui manifestações semelhantes às chilenas, e sobre os acontecimentos no Chile serem uma tentativa da esquerda de voltar ao poder.

Pelo conteúdo das conversas, o presidente está mal informado. Vamos lá. O relato que vou fazer é da minha participação na cobertura das manifestações de 2013, de conversas que tenho mantido com colegas chilenos e de avaliações que li de estudiosos do assunto. Julho de 2013 foi um mês chuvoso em Porto Alegre. Inicialmente, o ponto de partida das manifestações era diante do prédio da Prefeitura Municipal, bem no centro da cidade. A grande novidade era a convocação dos manifestantes pelas redes sociais. Participava a família inteira – mãe, pai e filhos. Eles deixavam bem claro que o movimento não era partidário e também não tinha ligação com movimentos sociais. No segundo ou terceiro dia, o Movimento  Anarquista tomou conta das manifestações. Imediatamente os Black Bloc – jovens mascarados – começaram a caçar jornalistas, colocar fogo em contêineres de lixo e enfrentar a Brigada Militar (BM), como é chamada a polícia militar gaúcha. Três coisas aconteceram então: as famílias abandonaram as manifestações, os jornalistas das redes de televisão ficaram a uma distância segura porque eles são  sempre a primeira vítima nas manifestações, em 2014, no Rio de Janeiro,  o cinegrafista da Rede Bandeirante Santiago Andrade, 49 anos, foi morto por um manifestante com um rojão. E a terceira coisa que aconteceu foi que  os repórteres dos jornais  deixaram  de lado os bloquinhos e as canetas  e se  misturaram  aos manifestantes para  documentar os acontecimentos de dentro.

Com a ascensão dos anarquistas, os partidos de esquerda se afastaram das manifestações. Eles davam apoio logístico, recolhendo, por exemplo, os feridos no enfrentamento com as tropas da BM e os levando ao Hospital de Pronto Socorro (HPS). Nas noites seguintes, pelas ruas por onde a manifestação passava, restava um rastro de lojas, bancos e equipamentos públicos destruídos. Por várias vezes houve tentativa de cercar o prédio do Grupo RBS.

No final da primeira semana, a confusão se intensificou com a presença de saqueadores entre os manifestantes. Eles não estavam nem aí para os comandos dos anarquistas. Tanto que, durante uma marcha, na Zona Sul da cidade, os organizadores tentaram conduzir a manifestação rumo ao centro de Porto Alegre. Não conseguiram. Os saqueadores gritaram e conseguiram conduzir a multidão em direção a um grande shopping center, com a intenção de invadi-lo. Foram surpreendidos por um contingente da BM. Nas duas noites seguintes, até os Black Bloc, que eram o braço forte dos anarquistas, foram hostilizados pelos saqueadores. Foi quando os movimentos sociais entraram nas manifestações. A primeira coisa que fizeram foi colocar para fora os saqueadores. Depois deram um rumo político para o movimento e, logo a seguir, vieram as negociações com as autoridades. Em linhas gerais, mas bem gerais mesmo, foi o que aconteceu em Porto Alegre nas noites de julho de 2013. Não foi muito diferente em outras capitais do país.

No final das manifestações, várias pessoas envolvidas com vandalismo e saques foram identificadas e responderam a inquéritos policiais. Não houve uma  tragédia maior  porque a BM, no Rio Grande do Sul, e as polícias militares de outros Estados são treinadas em técnicas de controle de tumulto. Aqui chegamos ao xis da nossa história. Imaginem se fossem colocadas tropas das Forças Armadas nas ruas para conter os manifestantes. Teriam acontecido mortes. Por quê? Pelo simples fato de que soldados são treinados para matar, lutar em guerras. Em abril, no Rio de Janeiro, 12 soldados de um batalhão do Exército confundiram o carro do músico Evaldo dos Santos Rosa com o de um assaltante e disparam 80 tiros. Mataram o músico e feriram outras pessoas. Eu estava nas manifestações de 2013 e por diversas vezes testemunhei policiais militares encurralados pelos manifestantes. Nestas circunstâncias, um soldado do Exército dispararia a sua arma. O policial militar é treinado para lidar com essa situação. O soldado das Forças Armadas, não. Sobre as manifestações chilenas serem uma tentativa da esquerda de voltar ao poder, como disse Bolsonaro, lembro que o perfil desse tipo de protesto é o caos. Ninguém consegue comandar, por mais experiente que seja. No Brasil, a Constituição de 1988 assegura o direito de qualquer tendência política, incluindo a esquerda, disputar o poder nas urnas. Alguém tem que avisar o presidente que a Guerra Fria – a disputa entre a então União Soviética, comunista, e os Estados Unidos, capitalista, que dividiu o mundo entre 1947 a 1991 – acabou. Uma coisa é certa. Se acontecerem manifestações no Brasil parecidas com as 2013 e Bolsonaro colocar tropas das Forças Armadas nas ruas, estará apagando fogo com gasolina. Podem anotar.

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