Quando a história mora ao lado do repórter

A pandemia é como um pesadelo sem fim. Foto: Reprodução

Uma coisa é quando o repórter chega ao local do acontecimento, faz a cobertura, envia a matéria para a redação, entra no carro e vai embora. Outra é quando ele mora no local e faz parte da história que está cobrindo. Essa é a realidade dos jornalistas brasileiros nos dias de hoje, envolvidos na cobertura diária da pandemia causada pela Covid-19, que está matando mais de 1,5 mil pessoas por dia no país e causando o colapso do sistema hospitalar. Câmeras frigorificas estão sendo instaladas nos pátios dos hospitais para armazenar os cadáveres. Já são 257 mil mortos no Brasil. E o número de óbitos diários continua avançando, com a previsão de que ultrapassará os Estados Unidos, que hoje somam 500 mil mortos. Mas o número diário de americanos mortos vem caindo, porque a população está sendo vacinada. Enquanto no Brasil o número está aumentado porque a vacinação é a conta-gotas. E diariamente assiste ao presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partidos), divulgar o seu negacionismo em relação ao poder de contaminação e a letalidade do vírus. É preciso ter sangue-frio para trabalhar em um ambiente desses.

É sobre essa realidade dos repórteres envolvidos na cobertura do dia a dia que quero conversar. Nas últimas duas semanas tenho intensificado a troca de ideias com jovens repórteres espalhados pelas redações, principalmente do interior do Brasil. Lembro-me que quando comecei na profissão, em 1979, no final do trabalho a gente ia para casa e levava junto a história da qual tínhamos feito a cobertura. Logo nos primeiros anos na carreira de repórter fiz a opção pela especialização em conflitos agrários, migrações internas e crime organizado nas fronteiras por entender que teria melhores oportunidades profissionais se me tornasse referência em alguns assuntos de interesse do leitor. Quando me envolvia na cobertura de conflitos de terra pelos rincões do Brasil a barra pesava. Geralmente havia mortes, feridos e muita confusão. Depois da cobertura, que muitas vezes se estendia por um mês inteiro, voltava para casa trazendo a história bem viva na memória. E não foram uma nem duas. Mas diversas as vezes que eu acordava no meio da noite aos gritos e com o coração em disparada. Na manhã seguinte, porém, ia para a redação como se tivesse tido uma noite tranquila de sono, porque a história que causara o pesadelo tinha acontecido muito longe da minha porta. E logo estaria envolvido em outra cobertura “lá por onde o diabo perdeu as botas”, como se diz no interior do Rio Grande do Sul para se referir a um lugar distante.

É outra a vida dos repórteres envolvidos na cobertura diária da pandemia, porque a história que estão cobrindo pode estar acontecendo ao lado da sua casa, ou dentro dela. É como se estivessem tendo um pesadelo do qual não conseguissem acordar. E como ter a frieza exigida para manter o foco na apuração da matéria e a capacidade de escrever a história com exatidão e de uma maneira simples para o leitor? Não é fácil. E já se pode notar nas entrelinhas das matérias a indignação com a situação aparecendo. Dependendo do grau dessa indignação ela não prejudica a qualidade da matéria. Muito pelo contrário. Ela reforça para o leitor a ideia de que não deve aceitar a situação como se fosse normal. Não é. Podia ser diferente, por exemplo no caso das vacinas. Se o governo federal não tivesse sido contaminado pelo negacionismo de Bolsonaro a velocidade na vacinação poderia ser muito mais rápida do que é hoje. Em uma conversa que tive com um jovem repórter do Mato Grosso do Sul contei a ele uma história que vivi na cobertura da Guerra Civil de Angola, na África, em 1992, às vésperas de mais um dos inúmeros cessar-fogo que aconteciam e logo eram desrespeitados. A história foi um papo que tive uma noite com um jornalista francês num boteco de Luanda, a capital de Angola. Ele era um veterano na profissão que vivia pulando de guerra em guerra, fazendo texto e foto e vendendo para os jornais ao redor do mundo. Depois de esvaziarmos muitas garrafas long neck de cerveja, ele me disse que o segredo da cobertura de uma guerra é não passar para o leitor que aquilo ali é normal. É por isso que se chama guerra. Muitos conflitos depois, eu aprendi que a maneira de não achar normal uma guerra é dar ouvidos à indignação quando ela brota nas nossas matérias.

A indignação com a situação não compromete a qualidade das nossas matérias. Desde que ela não se manifeste de maneira panfletária. Mas alinhada com os fatos para mostrar ao leitor que a situação seria outra se alguém não tivesse negligenciado os seus compromissos. A cobertura do dia a dia para os noticiários dos jornais (papel e site), TVs, rádios e outras plataformas é uma grande escola de jornalismo pela diversificação dos fatos que acontecem e que exigem do repórter rapidez e precisão na apuração e simplicidade e exatidão na redação do texto. Ainda é cedo para dizer porque as coisas ainda estão rolando. Mas creio que a cobertura da pandemia vai marcar para sempre a atual geração de repórteres. No caso do Brasil e dos Estados Unidos, a situação foi agravada por causa de dois presidentes negacionistas da Covid-19: Donald Trump (republicado), derrotado por Joe Biden (democrata) no final do ano passado. E Bolsonaro, seguidor de Trump, que está apostando que o negacionismo o reelegerá presidente em 2022. Tanto que o ministro da Saúde, general da ativa do Exército Eduardo Pazuello, transformou o negacionismo em política de governo. Uma poderosa e bem articulada máquina de fake news do governo federal tenta convencer a população que o negacionismo não tem nada a ver com as mortes, falta de vacina e muito menos com o colapso do sistema de saúde. E que tudo é invenção da imprensa. Não é. Nós repórteres vivemos nesse país e a história está acontecendo com os nossos vizinhos e até dentro das nossas casas.

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