Cobertura do coronavírus e de Bolsonaro: batismo de fogo dos jovens repórteres

Pelos quatro cantos do Brasil, como em Manaus (AM), o coronavírus deixa um rastro de destruição documentada pelos noticiários com histórias escritas pelos jovens repórteres. Fotos: Reprodução

Não sou profeta do apocalipse que prega que a nossa profissão de repórter esteja com os seus dias contados. A certeza da minha crença é o trabalho que os jovens repórteres estão fazendo na cobertura das tragédias espalhadas pelo coronavírus nos quatro cantos do país e do governo do presidente da República Jair Bolsonaro (sem partido), uma pessoa emocionalmente instável que tem como esporte predileto humilhar e agredir jornalistas diariamente. Na questão do vírus vi uma jovem repórter escutando o depoimento de um filho chorando ao relatar que o seu pai estava morrendo sentando em uma cadeira do corredor do hospital por falta de leito na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI).  A repórter não moveu um músculo da face enquanto ouvia o relato. Depois da entrevista foi para um canto chorar. É assim que a gente sobrevive a uma carga emocional desse calibre. Também vi Bolsonaro de dedo em riste mandando os repórteres calar a boca. Agiram como se não fosse com eles e continuaram trabalhando. Nessas situações é grande a vontade de atirar o bloco de anotações no desaforado.

Claro, aqui e ali há alguns pontos da cobertura do vírus e das confusões armadas pelo presidente Bolsonaro que poderiam ser melhores. Mas, de uma maneira geral, os jovens estão fazendo bom trabalho, ou como se diz aqui no Rio Grande do Sul: “a gurizada tá dando conta do riscado”. A situação do Brasil é inédita por conta de uma emergência sanitária e da Presidência da República ser ocupada por uma pessoa com problemas emocionais. Bolsonaro lembra a figura do presidente Jânio Quadros, que ficou no cargo durante meia dúzia de meses em 1961 e renunciou alegando estar sendo pressionado “por forças ocultas” – há vasto material na internet. A situação dos jovens repórteres também é inédita no jornalismo brasileiro. Vejamos a minha geração de repórteres. Comecei a trabalhar em redação de jornal em 1979 e sai em 2014. Tempos em que, quando se tinha uma ideia, se entrava na sala do diretor da redação, trocava meia dúzia de palavras e se saía a viajar para fazer a reportagem. Sem responder à pergunta: “quanto vai custar?”. Mais ainda: eu era pago para fazer texto e investigação. Hoje não basta ter uma boa ideia de pauta. É preciso que o custo dela seja pequeno. E o salário do repórter é um dos menores da história e a sua carga de trabalho, uma das maiores: ele faz texto, fotos, vídeos e áudio. Além disso, vive com a constante ameaça de perder o emprego.

Portanto, um dos momentos mais importantes da história do Brasil está sendo documentado por esse repórter, que vive uma situação de condições precárias de trabalho. Ele está se superando e conseguindo documentar os fatos. A irritação de Bolsonaro é uma das provas que as coisas estão sendo feitas pelos jornalistas de maneira correta. A credibilidade que os leitores voltaram a ter na imprensa pelo seu trabalho na cobertura da crise sanitária é uma prova de que também ela está fazendo a coisa certa na cobertura do coronavírus. Antes de seguir contando a história. Os jovens repórteres que trabalham pelas redações do interior do Brasil, longe das fontes oficiais e na maioria das vezes com acesso precário à internet, merecem uma consideração especial pela dedicação que têm mostrado aos seus leitores. Voltando à história. Tenho dito nas minhas palestras nas redações dos jornais e faculdades que a crise das empresas de comunicação é uma coisa, a nossa profissão é outra coisa. As empresas de comunicação como conhecemos hoje estão em um processo acelerado de reformulação. E nós? Temos que nos organizar, porque a era do emprego com carteira assinada acabou. Temos bons exemplos na história, como a imprensa alternativa que foi montada pelos jornalistas desempregados durante o Regime Militar (1964 a 1985) – há vários estudos e matérias disponíveis na internet.

Durante o tempo que trabalhei em redação, eu praticamente pulei de uma tragédia para outra. Em parte pelo foco da minha carreira, que são conflitos agrários, migrações e crime organizado nas fronteiras. A última tragédia foi o incêndio da boate Kiss, na madrugada de 13 de janeiro de 2013, em Santa Maria (RS). Morrem 242 pessoas, a maioria jovens universitários, outras 640 ficaram feridas, muitas com gravidade e sequelas. Quatro pessoas foram apontadas por um volumoso inquérito policial como responsáveis pela tragédia: os donos da boate, Elisandro Spohr, o Kiko, e Mauro Hoffmann. Mais Marcelo Santos e Luciano Bonilha, da banda Gurizada Fandangueira. Até hoje (29/05) não foram a julgamento graças a uma série de manobras jurídicas dos seus advogados. Eu e mais um bando de repórteres ficamos trabalhando em Santa Maria mais de um mês e depois voltamos para as redações e nos envolvemos com outras tragédias. Mas um de nós ficou lá, o Luiz Roese, conhecido como Tigrinho, que se especializou na questão Kiss e pegou o pé dos quatros acusados até a sua morte, em 14 de setembro de 2019. Conheci o Tigrinho quando ele tinha uns 22 anos e entrou na Zero Hora, em Porto Alegre (RS). O apelido nasceu entre os velhos repórteres. Morreu jovem, aos 45 anos, e um dia antes de falecer me alertou estavam tentando transferir o julgamentos dos indiciados pela tragédia da Kiss de Santa Maria para Porto Alegre. Caras como o Tigrinho serão sempre um exemplo para nós. Seja lá qual for o final da história do vírus e do governo Bolsonaro, o certo é que ela será escrita por um repórter. É simples assim.

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