Fama do gaúcho de degolar o inimigo político nasceu no fio da faca de um tal Adão

Mariano junto ao túmulo do Latorre no Cemitério dos Anjos no interior de Bagé. Foto: Pessoal

Não se julga a qualidade de um repórter pela estética do seu texto, todos sabem escrever. Mas pelo conteúdo. Os alicerces do texto são as informações que, para serem encontradas e avaliadas, exigem do profissional conhecimento das técnicas de investigação jornalística e da história política, econômica e dos costumes que cercam o assunto. Na hora de montar o texto é exigido de nós a paciência e o tino de um garimpeiro para fazer uma escala de importância das informações. Esse conhecimento não está disponível nas faculdades de jornalismo, muito menos nos manuais das redações, porque ainda não foi organizado. Ele existe entre os repórteres que vão descobrindo e aperfeiçoando as técnicas de busca pela informação no seu trabalho diário. O repórter Nilson Mariano, 62 anos, é um cara que conseguiu, em 38 anos trabalhando nas redações, desenvolver as tecnologias necessárias para se contar uma história. Ele exibe os seus conhecimentos da lida reporteira no livro Um Tal Adão Latorre – A degola na Revolução de 1893. Uma leitura obrigatória para jovens repórteres e professores das faculdades de jornalismo.

A história do livro ocorreu em 1893, durante a Revolução Federalista, a guerra civil em que maragatos (os rebeldes, com lenço vermelho ao pescoço) e pica-paus (os legalistas, de lenço branco) travaram, durante dois anos (1893-95), sangrentos combates pelo território do Rio Grande do Sul. Em um deles, às margens do Rio Negro, na região de Bagé, os maragatos aprisionaram uns 300 pica-paus e os colocaram dentro de um curral de pedra. O tenente-coronel Adão Latorre, homem valente descendente de escravos, a mando dos chefes maragatos, degolou dezenas de prisioneiros. Ali nasceu a fama de degolador de Latorre, que acabou se espalhando entre todos os gaúchos e cruzou o tempo. Lembro-me que lá por 1985 eu fazia uma reportagem em São Borja. Foi um dia quente e ao anoitecer eu estava no Passo – um porto às margens do Rio Uruguai, que separa o Brasil da Argentina – comendo peixe e tomando cerveja argentina gelada. Comecei a conversar com um velho sobre os tempos das revoluções. Ele me contou que um dos seus parentes fez parte da gauchada que levou Getúlio Vargas até o Rio de Janeiro, no que entrou para a história como a Revolução de 30.

Na época, a capital federal do Brasil era o Rio de Janeiro. Foi lá que Getúlio tomou posse como presidente, colocando fim à Velha República e iniciando a Era Vargas (1930 a 1945). Os gaúchos ataram os cavalos no Obelisco da Avenida Rio Branco – as fotos desse episódio são famosas até hoje. O velho ouviu do seu parente o seguinte: “Contou-me que todos por lá (Rio de Janeiro) tinham medo dos gaúchos, que tinham fama de degoladores”. A degola faz parte da nossa cultura. Ela é lembrada em músicas, poemas e muitas, mas muitas histórias que são contadas para as crianças pelo interior do Estado. Por que a degola? O Mariano conta o seguinte no livro: ”Mas como foi que Latorre se tornou um cortador de gargantas? Não foi o único, muito menos o primeiro. Na história da maldade humana, a degola é uma marca genuína do Rio da Prata – abrangendo Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul –, assim como outras nações adotaram o fuzilamento, a guilhotina, o empalamento, a forca e o envenenamento como métodos de execução”.
Com a habilidade de um experimentado guia, Mariano conduz o leitor, através de 148 páginas, pelo Rio Grande do Sul dos tempos das revoluções. Fala dos meios transporte, os trens, as diligências e os escassos automóveis. Das linhas de telégrafo, um grande avanço nas comunicações. Dos cabarés, onde as mulheres eram meninas de 15 anos, um pouco mais. Lembra que naquele tempo os jornais tinham lado político. Descreve como as notícias chegavam às redações de Porto Alegre vindas dos sertões gaúchos. A questão dos jornais é um importante conhecimento para os jovens repórteres. Muitas vezes recuperamos uma história lendo jornais dos tempos das revoluções. E publicamos sem advertir o leitor que aquela notícia é a versão de um dos lados na disputa. Latorre não morreu na Revolução de 1893. Morreu na seguinte, a de 1923, que na verdade foi um desdobramento daquela. Aos 88 anos, ele se entreverou nos combates. Assim narrou o autor da morte do degolador: “Não desistiu… No momento em que tentava remontar, a bota esquerda rumo ao estribo e a mão alçando às crinas em cogotilho da andadura sem cavaleiro, num derradeiro esforço em direção vazio, o veterano maragato levou dois balaços. Um no peito, outro na barriga. O cavalo roubado não o levaria para ‘lejos’.”

A estrutura dada ao texto pelo Mariano exigiu muito conhecimento, que foi buscado na memória de quem ouviu a história, em documentos e em publicações. Hoje, com as demissões em massa nas redações e o estreitamento cada vez maior do mercado de trabalho para repórteres, a saída vem sendo o nosso envolvimento em roteiros de documentários, reportagens exclusivas e descobertas de fatos que dizem respeito ao dia a dia dos nossos leitores. Nunca o conhecimento de como se faz uma reportagem foi tão necessário como nos dias atuais. Uma análise de como foi construído o livro do Mariano é importante para quem está começando na lida.

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