Versão governamental das 500 mil mortes e a história que os mortos nos contam

Repórteres: qual é a história que os mortos pela Covid – 19 nos contam?

Por estar na maioria das vezes envolvido em reportagens complexas que exigiam cruzamento de informações e com outras dificuldades para montar um texto simples, elegante e preciso, sempre que eu ficava enrolado com uma matéria dava uma conversada com os colegas repórteres que faziam a cobertura policial. Por quê? Considero a reportagem policial uma das melhores escolas para lapidar jornalistas. A apuração da matéria acontece em um ambiente em que todos têm a sua versão sobre um crime: o delegado, o suspeito, os advogados e até o corpo da vítima, porque a autópsia pode revelar como tudo aconteceu. No final, o repórter policial ouve todas as versões, cruza as informações e conta uma história. Eu assisti com os olhos de repórter de polícia à sessão da última terça-feira (22/06) da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado da Covid-19, a CPI da Covid, quando prestou depoimento o deputado federal gaúcho e médico Osmar Terra (MDB), 71 anos. Os senadores queriam saber se Terra era a pessoa que articulava o “gabinete paralelo” que orienta sobre a pandemia o presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido).

Terra negou que fosse “orientador do presidente” no caso da pandemia e afirmou não existir o “gabinete paralelo”. Descreveu suas conversas com Bolsonaro como simples troca de informações, sem maiores consequências. Mas durante todo o seu longo depoimento ele se manteve fiel ao roteiro da versão do governo federal para os 500 mil mortos pela Covid. A estrutura narrativa do governo tem três pilares: o primeiro é que o poder de administrar a crise foi retirado de Bolsonaro pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e dado aos governadores e prefeitos. O segundo é que o isolamento social não funciona e detonou a economia. E o terceiro é que o tratamento preventivo contra a Covid, usando drogas como cloroquina, salva vidas. Conheço Terra desde o final dos anos 80, quando ele começou a sua carreira política em Santa Rosa, uma cidade agroindustrial no interior do Rio Grande do Sul. Ele tem um currículo respeitado pela esquerda, pelo centro e pela direita na saúde pública. Por que tornou-se defensor do negacionismo de Bolsonaro em relação ao poder de contágio e letalidade do vírus? Isso é problema dele e dos seus eleitores. O nosso, de jornalistas, é advertir o nosso leitor que Terra está usando todo o seu conhecimento para reforçar a versão do governo sobre a pandemia. Fez isso com maestria na CPI. Mostrando gráficos e citando estudos sobre medicações. Lapidou a versão do governo. Os senadores da CPI da Covid já têm informações suficientes para delinear o contorno do que aconteceu. Aqui chegamos ao cerne da nossa conversa. Sem ter que transformar cada matéria em uma longa e repetitiva história, como nós repórteres podemos desatar esse nó?

Aqui entra a objetividade do repórter de polícia. Os jornalistas têm que deixar claro para os seus leitores que estão contando a história revelada pela autópsia dos 500 mil brasileiros mortos. O que facilitou a ação da Covid nos seus organismos que os levou a óbito? Lendo o que publicamos, podemos resumir em três os fatos que contribuíram em definitivo para a morte pela Covid. O primeiro é o mais escandaloso. Dezenas de pacientes morreram nos hospitais de Manaus (AM) e no interior do Pará por falta de oxigênio hospitalar. O segundo fato: logo nos primeiros meses do ano, os sistemas públicos e privado de saúde em 25 dos 27 estados colapsaram. Sem vagas nas UTIs, centenas de pessoas morreram em casa ou em cadeiras nos corredores dos hospitais. E, por último, o atraso na compra das vacinas, que resultou no atual sistema de conta-gotas de imunização da população. Esses três fatos têm as digitais do governo Bolsonaro. A cada dia, em média, morrem 2 mil brasileiros pela Covid. A hora de discutir a versão do governo sobre os fatos já passou. A discussão sobre a eficiência da cloroquina e do isolamento social já acabou. A cloroquina não funciona e o isolamento social é a única maneira que temos de evitar o alastramento do vírus. A hora é a da vacina, que vem a passos de tartaruga enquanto a Covid-19 vem a galope. Tenho estado atento aos conteúdos que estamos publicando nos jornais (papel e sites), noticiários de rádio e TV e outras plataformas de comunicação sobre as versões do governo sobre os 500 mil mortos. O que tenho visto é que os noticiários estão ficando mais objetivos e deixando de lado as versões do governo. Por quê? Existe um fato maior. Já são 500 mil mortos e 2 mil pessoas continuam morrendo diariamente de Covid.

Arrematando a conversa. Eu gostaria de chamar a atenção dos meus colegas que trabalham nas redações dos jornais, rádios, TVs e outras plataformas de comunicação no interior do Brasil. Como o governo federal montou essa lambança que é o combate a pandemia está sendo investigada pela CPI da Covid. O que interessa ao nosso leitor? É quando ele tomará a vacina. E como ele sobreviverá até lá. Como diz o ex-ministro da Saúde e general-de-divisão da ativa do Exército Eduardo Pazuello: “É simples assim”.

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