O efeito The Intercept nas redações dos jornais do Brasil

As publicações do The Intercept mostram o que acontecia entre as quatro paredes da Lava Jato, um conhecimento importante para evitar a repetição de uma nova Escola de Base. Foto: reprodução.

Lembrem da Escola Base! Essa frase se ajusta ao aviso que vem sendo dado às redações dos noticiários brasileiros pelas publicações do site The Intercept Brasil. Desde a primeira semana do mês passado, o site vem publicando conversas feitas pelo aplicativo Telegram entre o então juiz Sergio Moro, da 13ª Vara Federal, em Curitiba (PR), com os procuradores da República da Operação Lava Jato.  A consolidação da imagem de símbolo do combate à corrupção da operação teve como construtor a imprensa, que, devido à concorrência entre os noticiários e à carência de pessoal, enfiou garganta abaixo dos repórteres a Lava Jato. Os conteúdos das delações premiadas e das investigações feitas em campo por agentes inundaram as redações em forma de vídeos, áudios e documentos.

Antes de seguir contando a história. Para quem não é ramo ou é iniciante na reportagem, vou lembrar o que foi a Escola Base; foi o maior erro cometido pela imprensa brasileira, que custou a destruição de uma família em São Paulo. E o pagamento de milhões em ações de danos morais pelas empresas de jornalismo. A Escola Base funcionava na cidade de São Paulo, e os seus proprietários foram acusados de abuso sexual contra crianças em uma investigação mal feita pela Polícia Civil. A imprensa publicou a versão da polícia e transformou o caso em notícia mundial. Novas investigações mostraram que nada do que se tinha noticiado havia acontecido. Aí já era tarde. Nós já tínhamos tornado verdade uma mentira. Voltando a contar a história. Lembro que, logo que a Lava Jato começou a tomar corpo de símbolo da luta contra a corrupção, iniciou-se no nosso meio, principalmente entre os repórteres mais velhos, uma conversa de que a situação lembrava a Escola Base. Todos nós estamos “comendo na mão”   de uma única fonte de informações: a operação.

A informação que vinha para nós era de um grupo de pessoas que interrogava, investigava e julgava os suspeitos. O mínimo que se poderia esperar era que cada um cumprisse a sua função determinada pela lei. O que as publicações do The Intercept estão mostrando é que isso não acontecia. Muito pelo contrário. Moro não respeitava os limites impostos pela lei entre ele e os procuradores da República, especialmente Deltan Dallagnol, coordenador da Lava Jato. Aqui é o xis da questão. No episódio da Escola Base, nós destruímos a vida de pessoas inocentes. Aqui a história é outra. Nós fomos os construtores da imagem de símbolo  da luta contra a corrupção da Lava Jato. E, com isso, tornamos o então juiz Moro e o procurador da República Dallagnol heróis nacionais. Descobrimos agora que os dois transgrediram a lei, falando um português simples e direto: mentiram para nós, repórteres.

Alegando ter um enorme volume de informações, o site The Intercept vem publicando as conversas dos procuradores a conta-gotas. E, seja lá o que vem por aí, uma coisa já se pode dar por certa: no final de tudo, vai acontecer uma enxurrada de ações pedindo reparação moral pelo que publicamos. Mesmo que a pessoa tenha sido condenada, ela tem direito de pedir indenização. Já vi acontecer. Em 2017, eu tive a honra de ser homenageado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). Na ocasião, falei que a maneira como estávamos cobrindo a Lava Jato lembrava a Escola Base. Com astúcia e organização, Moro e Dallagnol souberam usar a imprensa a seu favor. Não é crime. Faz parte do jogo.  Lembrando que não foram eles que demitiram jornalistas em massa ao ponto de deixar as redações vulneráveis a esse tipo de coisa. É simples assim.

10 thoughts on “O efeito The Intercept nas redações dos jornais do Brasil

  1. O papel da imprensa na Lava Jato foi absolutamente decisivo para criar o clima de apoio irrestrito à operação, inclusive às arbitrariedades que acontecerem em plena luz do dia, antes portanto de saber dos bastidores divulgados pelo site The Intercept.
    Para citar somente dois exemplos: a condução coercitiva de Lula sem que houvesse convocação anterior para ele depor na Polícia Federal (ou seja, não havia motivo nenhum para essa condução coercitiva, a não ser criar um estardalhaço), e a divulgação da conversa telefônica entre Lula e Dilma, gravação duplamente ilegal por envolver o Presidente da República (o que só pode ser autorizado pelo Supremo) e pela gravação ter continuado depois do horário determinado pela Justiça.
    Em ambos os casos ninguém na chamada grande imprensa teceu a menor crítica ao modus operandi da Lava Jato, apesar das flagrantes ilegalidades.

    O poder de manipulação da Lava Jato sobre a imprensa foi gigantesco, o caso da Escola Base é um excelente paralelo.

    Será que um dia veremos alguma autocrítica por parte da chamada grande mídia? Até hoje, somente a revista Veja fez um tímido mea culpa; estou no aguardo do pronunciamento dos outros grandes meios de comunicação…

    1. Se a grande imprensa não fizer uma autocrítica, eu acredito que vai aumentar a velocidade (que já é alta) com vem perdendo leitores. As pessoas compram um jornal, assistem um noticiário ou ouve uma notícia pela necessidade de se informar.

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