No Finados, o choro contido das famílias das mulheres procuradas vivas ou mortas

Sem o direito de chorar pelos seus mortos na Cruz das Almas. Foto: Reprodução

Os 600 quilômetros da BR-290 que ligam Porto Alegre a Uruguaiana, na fronteira com a Argentina, dividem o Rio Grande do Sul ao meio, no sentido leste a oeste. Viajando para oeste, em direção a Uruguaiana, no lado direito fica o norte, região de planaltos povoados por imigrantes europeus. À esquerda, esparramam-se as extensas pradarias que o gaúcho chama de Campanha e que fazem parte do Pampa, uma vasta planície que avança pelas terras castelhanas, atravessando as fronteiras com o Uruguai e a Argentina. À beira das estradas da Campanha existem muitos cemitérios que remontam aos tempos das lutas por território com os castelhanos, da Revolução Farroupilha (1835-1845) e da Revolução Federalista de 1893. Foi em um desses lugares que vi a Cruz das Almas. Tinha sido erguida uns dois metros acima das sepulturas cavadas no chão. Era feita por dois pedaços de madeira carcomidos pelo tempo. Quando estava começando na reportagem ouvi de um senhor, de idade avançada, que falava português misturado com castelhano, que a cruz marcava o local para as pessoas rezarem pelos seus mortos que não estavam enterrados no cemitério.

No Rio Grande do Sul, é tradição, no dia de Finados, as famílias rezarem e acenderem velas na Cruz das Almas dos cemitérios para seus mortos enterrados em outros locais. Um direito negado aos familiares das mulheres vítimas de violência que são procuradas vivas ou mortas. Por quê? Eles não sabem o que aconteceu com elas. Só sabem que desapareceram e que os suspeitos são conhecidos. Mas não foram presos porque não existe um cadáver. Comecei a trabalhar como repórter em 1979. E ao longo desses 41 anos de profissão notei que o crime contra as mulheres foi se sofisticando à medida que as leis que as protegem foram sendo elaboradas e colocadas em prática. Por exemplo, até 2019, o Código Penal admitia a tese da “legítima defesa da honra”, deixando impune os crimes contra as mulheres praticados por maridos, namorados e ex-companheiros. Isso acabou. Como também terminou a história da polícia não levar a sério as queixas das agredidas por seus companheiros. Hoje existem dezenas de delegacias da mulher e leis que determinam medidas protetivas contra agressores.

Mais uma coisa não mudou na lei. Sem o cadáver é muito difícil os investigadores conseguirem reunir provas para condenar o suspeito. São raros os casos de condenação. O mais comum é as vítimas engrossarem a galeria das procuras vivas ou mortas. No Rio Grande do Sul essa galeria vem recebendo novas vítimas. Na noite de 9 de abril de 2015, a professora Cláudia Hartleben, 47 anos, do curso de Biotecnologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), sumiu. A polícia tem os suspeitos. Mas não tem o cadáver ou o paradeiro da professora. Em 4 de setembro de 2018, fiz o post “Procuradas vivas ou mortas”, listando casos de mulheres, entre elas Cintia Luana Ribeiro Moraes, 14 anos, grávida de sete meses, desaparecida em Três Passos, e a comerciante Sirlene Freitas Moraes, 42 anos, que sumiu junto com o filho Gabriel, sete anos, em 2005, em Porto Alegre. A contadora Sandra Maria Lovis Trentin, 49 anos, ficou na lista dos procurados por um ano. Em janeiro de 2018, ela sumiu em Palmeira das Missões. Um ano depois, um agricultor encontrou o seu cadáver em uma cova rasa à beira da estrada entre Palmeira e Condor. A polícia prendeu o marido, Paulo Ivan Landfeld, por ter sido o mandante do crime. Ele contratou Ismael Boneto, 22 anos, para sequestrar e executar Sandra.

Os dois estão presos aguardando julgamento. O caso foi resolvido por um golpe de sorte. Já vi acontecer antes e trabalhei no caso. Mas e as outras? Enquanto seus desparecimentos não forem esclarecidos, servirão de incentivo para a violência contra as mulheres. São casos difíceis de solucionar devido ao tempo e principalmente a carência de estrutura científica e de pessoal da Polícia Civil do Rio Grande do Sul. Mas não é essa a questão. A questão é que a falta de empenho do Estado em demonstrar para a população, em especial para as famílias envolvidas, que esses casos não foram abandonados, deixa como única opção dos familiares a imprensa lembrar as autoridades de suas responsabilidades. Não faria falta na estrutura da Polícia Civil designar uma pequena equipe para cuidar desse tipo de caso. O Rio Grande do Sul perfila-se entre os lugares mais violentos para as mulheres na América do Sul. Claro, por vários motivos. Mas podem anotar, colegas repórteres, que deixar engavetados os casos das mulheres procuradas vivas ou mortas é um dos motivos. É por aí.

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