Em sua fala de fim de ano, Bolsonaro empurrou a “bronca” da Covid-19 para Deus

O presidente e a primeira-dama Michelle durante a mensagem de fim de ano. Foto: Reprodução

Um luxo que me dou por estar fora da redação e não ter um editor me dando bafo na nuca para terminar uma matéria: vez ou outra, caminho pela cidade de Porto Alegre, onde moro, ouvido o que as pessoas estão conversando nas filas. Também gosto de ligar para fontes que tenho espalhadas pelo Brasil e países vizinhos, especialmente o Paraguai, só para jogar conversa fora. E às vezes dou uma passada em uma delegacia de polícia para conversar com o delegado ou o chefe de investigação. No dia seguinte ao Natal, descobri que um delegado da velha guarda e amigo de longa data estava de plantão. Como andava havia dois dias com a luz do indicador de gasolina acessa, fui abastecer e aproveitei para passar pela delegacia e cumprimentar o meu amigo delegado. Ele é dono de um vocabulário antigo, chama bandido de meliante. Não perguntei. Foi ele quem falou no meio da conversa. Perguntou se eu tinha ouvido a mensagem de fim de ano do presidente Bolsonaro. Respondi que sim. Ele, sem alterar o tom de voz, disse: “Ele empurrou a bronca da Covid para Deus”. Respondi com um “pois é, né?” Enveredamos para os assuntos do futebol.

A nossa conversa durou uma meia hora. Se não houvesse a pandemia provocada pela Covid-19, ela não passaria de cinco minutos, porque em tempos normais, nessa época do ano, os plantões nas delegacias ficam cheios de gente, principalmente bêbedos. Antes de seguir a conversa, uma explicação para quem não é jornalista. Até os anos 80 era muito comum se ouvir nas delegacias de polícia a palavra “bronca” como sinônimo de autoria de crime. Os policiais falavam em “empurrar a bronca” no sentido de fugir da autoria. Como já disse, assisti à mensagem de fim de ano do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e da primeira-dama Michelle. Depois da conversa com o delegado, eu assisti à mensagem novamente. Em nenhum momento ouvi o presidente ou a primeira-dama mencionarem qualquer coisa relacionando a Covid-19 com Deus. Diferentemente das mensagens de fim de ano de outros presidentes, como Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT-SP), Bolsonaro fala em abundância o nome de Deus. Foi assim na mensagem do ano passado (2019). A respeito da pandemia, Bolsonaro falou de maneira burocrática dos desafios que ela trouxe para o Brasil e das soluções adotadas pelo seu governo para resolver o problema. Onde o delegado viu “bronca” na conversa do presidente?

Liguei para um amigo comum que temos – os dois são parceiros de pescaria. E perguntei o que andava preocupando o delegado. Ele me disse que ultimamente ele não parava de falar na vacina para a Covid-19. Então, quando o delegado falou sobre a “bronca”, estava me pautando. Para quem não é jornalista. No jargão dos repórteres, “pautar” significa sugerir que se faça uma matéria a respeito daquele assunto. A pauta do delegado, porém, não era sobre o que disse o presidente. Mas sobre o que ele não disse na mensagem. E que nós jornalistas não cobramos com a veemência que o assunto merece. Pela maneira como Bolsonaro falou do vírus, parece que ele é presidente de um outro Brasil. Não do Brasil onde a Covid está matando quase mil pessoas por dia, fazendo crescer uma lista que já soma 190 mil mortos. Em que os brasileiros convivem diariamente com o medo de ser a próxima vítima do vírus, enquanto assistem à população de vários países, como Grã-Bretanha, Estados Unidos, Canadá, México, Argentina e Equador, ser vacinada. E esperam ansiosamente por uma notícia concreta sobre quando também serão vacinados. O Brasil não está entre os países que estão vacinando a população devido à confusão causada na área da saúde pública e ao negacionismo do presidente em relação ao vírus – há uma imensidão de matérias sobre o assunto na internet. Tenho escrito e vou repetir. Os repórteres, especialmente os jovens que vivem na correria das redações fazendo a cobertura dos acontecimentos diários, precisam encontrar um tempo para andar sem destino pela cidade ouvindo as conversas das pessoas. Os brasileiros estão com os nervos à flor da pele com a demora da vacina. Cada vez que o presidente ou o seu ministro da Saúde, o general da ativa do Exército Eduardo Pazuello, falam sobre o assunto não dizem coisa com coisa. Não são objetivos, estão perdidos no meio da lambança que foi transformado o caso da vacina.

Arrematando a nossa conversa. A falta de um plano de vacinação da população não só estressa os brasileiros como também causa um enorme dano na retomada da economia. O que significa o aprofundamento do desemprego. Tenho dito nas minhas conversas online com colegas e professores de faculdades de jornalismo que é necessário esse tipo de análise começar a aparecer nos noticiários diários, principalmente das rádios e TVs abertas. Sei que o repórter faz um texto de cinco ou seis linhas sobre os acontecimentos. Mas é possível inserir uma frase alertando o leitor para a gravidade do problema, principalmente a questão da vacina. A paciência das pessoas com as lambanças do presidente Bolsonaro no caso da vacina da Covid-19 está se esgotando. Quem duvidar e só sair pela cidade gastando sola de sapato e saliva para conversar com as pessoas. As pessoas comuns precisam ser ouvidas sobre o que está acontecendo, para falarem o que pensam sobre o assunto. É importante.

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