Governo desmontou a PF e usa os escombros para servir à família Bolsonaro

Só falta o Bolsonaro falar: “a minha Polícia Federal”. Foto: Reprodução

Sendo justo para com o presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido). Ele não começou o desmonte da Polícia Federal (PF). O seu governo apenas deu o tiro de misericórdia na instituição fundada em 1944, que foi um braço poderoso do aparelho de repressão política e cultural montado pela ditadura militar que governou o país de 1964 a 1985. E que, na redemocratização, passou por uma transformação de qualificação e profissionalização dos seus quadros que deram à PF um lugar de destaque entre as polícias no mundo. Então, como aconteceu o desmonte? Qual é a consequência para o cotidiano dos brasileiros? E qual é o tamanho da responsabilidade da imprensa? É sobre isso que vamos conversar.

O desmonte da Polícia Federal começou na Operação Lava Jato. Na época, os heróis da imprensa eram o então juiz Sergio Moro, da 13ª Vara Federal, em Curitiba (PR), e o procurador da República Deltan Dallagnol. O grande alvo da Lava Jato era colocar na cadeia o ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva (PT-SP), funcionários da Petrobras e executivos das grandes empreiteiras, como a Odebrecht e a OAS. Os agentes da PF que faziam parte da força-tarefa eram tratados pela imprensa como figuras de decoração, tipo o “Japonês da Federal”, apelido colocado no agente Newton Ishi, que esteve presente na maioria das prisões. E a delegada Érika Mialik Marena, que no filme Polícia Federal – A lei é para todos era representada pela personagem Biá, uma policial linha-dura e comprometida com os fatos da investigação. Uma vez ou outra, a delegada vazava para a imprensa trocas de desaforos entre os policiais federais e os procuradores da Lava Jato. “Disputa de beleza”, era a nossa interpretação. Na ocasião, existia entre os repórteres que lidavam com a cobertura policial uma discussão de que se os federais da força-tarefa soubessem de alguma “forçação de barra” entre os procuradores para “ajeitar” uma prova, eles exerceriam o poder de polícia e não concordariam. Os federais não só concordaram com a “forçação de barra” como ajudaram. A situação veio a público na Operação Spoofing, quando a PF prendeu quatro hackers que haviam invadido os celulares dos procuradores da Lava Jato e do juiz Moro. E pegaram centenas de mensagens trocadas entre eles através do aplicativo Telegram – há centenas de matérias disponíveis na internet.

O segundo tombo no prestígio da PF foi dado pelo delegado Maurício Morcardi Grillo, na Operação Carne Fraca, em 2017. Foi cinematográfica a operação: 1,1 mil agentes cumpriram 309 mandados (prisão preventiva, temporária, condução coercitiva e busca e apreensão) em 30 empresas ligadas à manufatura de carnes para o mercado interno e externo. As acusações eram de adulteração do produto com o uso de substâncias químicas, troca de etiquetas de validade, entre outras. No final foi provado que a operação tinha sido uma “montanha que pariu um rato”. Muito barulho, muita correria e no final um resultado pífio. Mas que conseguiu, claro, espalhar pânico no mercado nacional e internacional de carnes. O terceiro tombo foi dado pela delegada Marena, depois que deixou a Lava Jato. Ela coordenou, em 2017, a Operação Ouvidos Moucos, que acusou o então reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Luiz Carlos Cancellier, de ter desviado R$ 80 milhões da instituição. Ele foi preso, e quando o liberam, se suicidou. Uma equipe de jornalistas da Veja examinou as 817 páginas do inquérito da delegada e não encontrou nenhum fato relevante provando o volume desviado e muito menos a participação do reitor. Sem provas, a PF encerrou o inquérito. Até hoje (22/04/21), e durante muitos anos, essa investigação da delegada Marena será citada como exemplo de um trabalho policial precário que custou a vida do reitor Cancellier.

Ao assumir o governo em 2019, Bolsonaro empossou como seu ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro, que abandonara a carreira de magistrado. Ele havia condenado à prisão – a pena foi confirmada na segunda instância – o ex-presidente Lula por corrupção e lavagem de dinheiro no caso do triplex de Guarujá, cidade do litoral de São Paulo. Lula era o principal adversário de Bolsonaro nas eleições presidenciais. Moro levou para o ministério vários agentes da PF que haviam trabalhado na força-tarefa da Lava Jato. Entre eles, a delegada Marena, que assumiu um cargo na Secretaria Nacional de Justiça. Em abril de 2020, Moro rompeu com Bolsonaro e pediu demissão. No centro da briga entre os dois estava a PF. Por quê? Moro não queria a intromissão do presidente na Federal. Na avaliação do presidente, Moro já tinha servido aos seus interesses quando tirou do caminho o seu maior adversário político, Lula. A família Bolsonaro tem os “seus dentro da Federal”. Eduardo Bolsonaro, filho do presidente e deputado federal por São Paulo, é escrivão da PF. Portanto, sabe quem é quem na instituição. Hoje, dentro da Polícia Federal, ser amigo de Eduardo Bolsonaro é a maior credencial para ocupar postos importantes na instituição. Um exemplo: o empresário e suplente de senador Paulo Marinho rompeu politicamente com os Bolsonaro. Segundo ele, Flávio, outro filho do presidente que foi deputado estadual e atualmente é senador pelo Rio de Janeiro, foi avisado por um delegado da PF sobre a realização da Operação Furna da Onça – que denunciou vários deputados estaduais do Rio por lavagem de dinheiro. Entre os denunciados estaria o então chefe do gabinete de Flávio, Fabrício Queiroz, e a sua filha Nathalia. Os dois foram demitidos antes da operação – há matérias na internet.

Bolsonaro ocupa o cargo de presidente há 27 meses e algumas semanas. Nesse período, a PF já teve três diretores-gerais. O quarto, o delegado Paulo Maiurino, assumiu recentemente e já mostrou serviço. Demitiu o seu colega Alexandre Saraiva, então superintendente da PF do Amazonas. Saraiva foi afastado logo após ter feito uma queixa-crime ao Supremo Tribunal Federal (STF) contra o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, por apoiar madeireiros ilegais que estão derrubando a Floresta Amazônica. Aqui é o seguinte, meus colegas. É do jogo os delegados e os agentes das polícias em qualquer país democrático do mundo formarem os seus grupos políticos dentro da repartição. O que existe hoje na PF é que há um desequilíbrio político entre esses grupos, causado por um somatório de fatores, alguns dos quais mencionei, como a força-tarefa da Lava Jato. E graças a isso o grupo de Bolsonaro cresceu e está dando as cartas na Polícia Federal. É importante restabelecer o equilíbrio político entre os grupos dentro da PF. Como se faz isso. Primeiro, nós jornalistas precisamos saber o que está acontecendo entre as quatro paredes da PF. Por tudo que tenho lido, ouvido e visto na imprensa, nós não sabemos. Antes de fechar a conversa. O “Japonês da Federal”, agente Newton Ishi, foi condenado em uma ação que respondia por contrabando. E Biá, a personagem do filme Polícia Federal – A lei é para todos, era só uma ficção inspirada no modo de agir da delegada Érika Mialik Marena.

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